terça-feira, 19 de março de 2019

Cruz e Sousa: Poemas 1


No ano em que completa a mística dos 121 anos da morte do escritor Cruz e Sousa, o grande mestre do simbolismo literário brasileiro, que nos deixou uma obra riquíssima, o Falas ao Acaso abre espaço para homenageá-lo, em três postagens. Para estas publicações selecionei poemas (ao meu gosto) dos livros Faróis (1900), Poemas  Humorísticos e Irônicos (?), Broquéis (1893) e Poesia Interminável (2002). Sua obra já se encontra em Domínio Público e na web (alguns links abaixo) há farto material de estudo..., bem como livros para download.

Hoje, do livro Faróis, sete intensos sonetos de amor e dor ressignificam a natureza feminina: Cabelos; Olhos; Boca; Seios; Mãos; Pés; Corpo..., e, de bônus, o poema Caveira, que desconstrói a beleza humana. Amanhã, a catarse (incômoda!) em quatro poemas extraídos de Broquéis e Poemas Humorísticos e Irônicos. E na terceira postagem será a vez da paixão e da melancolia em poemas pinçados de Poesia Interminável e Poemas Humorísticos e Irônicos.


                             
I
CABELOS
Cruz e Sousa

Cabelos! Quantas sensações ao vê-los!
Cabelos negros, do esplendor sombrio,
Por onde corre o fluido vago e frio
Dos brumosos e longos pesadelos...

Sonhos, mistérios, ansiedades, zelos,
Tudo que lembra as convulsões de um rio
Passa na noite cálida, no estio
Da noite tropical dos teus cabelos.

Passa através dos teus cabelos quentes,
Pela chama dos beijos inclementes,
Das dolências fatais, da nostalgia...

Auréola negra, majestosa, ondeada,
Alma da treva, densa e perfumada,
Lânguida Noite da melancolia!



                             
II
OLHOS
Cruz e Sousa

A Grécia d’Arte, a estranha claridade
D’aquela Grécia de beleza e graça,
Passa, cantando, vai cantando e passa
Dos teus olhos na eterna castidade.

Toda a serena e altiva heroicidade
Que foi dos gregos a imortal couraça,
Aquele encanto e resplendor de raça
Constelada de antiga majestade,

Da Atenas flórea toda o viço louro,
E as rosas e os mirtais e as pompas d’ouro,
Odisséias e deuses e galeras...

Na sonolência de uma lua aziaga,
Tudo em saudade nos teus olhos vaga,
Canta melancolias de outras eras!...



                             
III
BOCA
Cruz e Sousa

Boca viçosa, de perfume a lírio,
Da límpida frescura da nevada,
Boca de pompa grega, purpureada,
Da majestade de um damasco assírio.

Boca para deleites e delírio
Da volúpia carnal e alucinada,
Boca de Arcanjo, tentadora e arqueada,
Tentando Arcanjos na amplidão do Empírio,

Boca de Ofélia morta sobre o lago,
Dentre a auréola de luz do sonho vago
E os faunos leves do luar inquietos...

Estranha boca virginal, cheirosa,
Boca de mirra e incensos, milagrosa
Nos filtros e nos tóxicos secretos...



                            
IV
SEIOS
Cruz e Sousa

Magnólias tropicais, frutos cheirosos
Das árvores do Mal fascinadoras,
Das negras mancenilhas tentadoras,
Dos vagos narcotismos venenosos.

Oásis brancos e miraculosos
Das frementes volúpias pecadoras
Nas paragens fatais, aterradoras
Do Tédio, nos desertos tenebrosos...

Seios de aroma embriagador e langue,
Da aurora de ouro do esplendor do sangue,
A alma de sensações tantalizando.

Ó seios virginais, tálamos vivos
Onde do amor nos êxtases lascivos
Velhos faunos febris dormem sonhando...



                            
V
MÃOS
Cruz e Sousa

Ó Mãos ebúrneas, Mãos de claros veios,
Esquisitas tulipas delicadas,
Lânguidas Mãos sutis e abandonadas,
Finas e brancas, no esplendor dos seios.

Mãos etéricas, diáfanas, de enleios,
De eflúvios e de graças perfumadas,
Relíquias imortais de eras sagradas
De amigos templos de relíquias cheios.

Mãos onde vagam todos os segredos,
Onde dos ciúmes tenebrosos, tredos,
Circula o sangue apaixonado e forte.

Mãos que eu amei, no féretro medonho
Frias, já murchas, na fluidez do Sonho,
Nos mistérios simbólicos da Morte!



                            
VI
PÉS
Cruz e Sousa

Lívidos, frios, de sinistro aspecto,
Como os pés de Jesus, rotos em chaga,
Inteiriçados, dentre a auréola vaga
Do mistério sagrado de um afeto.

Pés que o fluido magnético, secreto
Da morte maculou de estranha e maga
Sensação esquisita que propaga
Um frio n’alma, doloroso e inquieto...

Pés que bocas febris e apaixonadas
Purificaram, quentes, inflamadas,
Com o beijo dos adeuses soluçantes.

Pés que já no caixão, enrijecidos,
Aterradoramente indefinidos
Geram fascinações dilacerantes!



                             
VII
CORPO
Cruz e Sousa

Pompas e pompas, pompas soberanas
Majestade serene da escultura
A chama da suprema formosura,
A opulência das púrpuras romanas.

As formas imortais, claras e ufanas,
Da graça grega, da beleza pura,
Resplendem na arcangélica brancura
Desse teu corpo de emoções profanas.

Cantam as infinitas nostalgias,
Os mistérios do Amor, melancolias,
Todo o perfume de eras apagadas...

E as águias da paixão, brancas, radiantes,
Voam, revoam, de asas palpitantes,
No esplendor do teu corpo arrebatadas!



      
CAVEIRA
Cruz e Sousa

I
Olhos que foram olhos, dois buracos
Agora, fundos, no ondular da poeira...
Nem negros, nem azuis e nem opacos.
Caveira!

II
Nariz de linhas, correções audazes,
De expressão aquilina e feiticeira,
Onde os olfatos virginais, falazes?!
Caveira! Caveira!!

III
Boca de dentes límpidos e finos,
De curve leve, original, ligeira,
Que é feito dos teus risos cristalinos?!
Caveira! Caveira!! Caveira!!!

*
ilustrações de Joba Tridente.2019


João da Cruz e Sousa (Nossa Senhora do Desterro - SC: 24.11.1861 - Curral-MG: 19.03.1898), escritor de prosa e verso, abolicionista, precursor do movimento literário simbolista no Brasil, é considerado um dos maiores nomes da literatura brasileira. Negro, filho de pais alforriados e apadrinhado pelo ex-senhor Guilherme Xavier e Sousa e sua esposa Clarinda Xavier e Sousa, o gênio precoce Cruz e Sousa, a despeito de todo o preconceito racial sofrido durante a sua formação escolar, aproveitou cada minuto de ensino no famoso Ateneu Provincial Catarinense..., tendo se destacado em francês, inglês, latim, grego, matemática e história natural. Foi admirador e leitor de Antero de Quental, Gonçalves Crespo, Cesário Verde, Teófilo Dias, Ezequiel Freire, Bernardino Lopes, Guerra Junqueiro, Charles Baudelaire, Leconte de Lisle, Leopardi, Edgar Allan Poe, Joris-Karl Huysmans, Gustave Flaubert, Guy de Maupassant, Edmond de Goncourt e Jules de Goncourt, Theophile Gautier, Paul Verlaine, Auguste Villieirs de l’Isle Adam. Porém toda a sua cultura e erudição não foram suficientes para quebrar a parede do racismo que o bloqueava aos cargos a que estava habilitado. Cruz e Sousa foi fundador e colaborador de vários veículos literários, como o jornal semanal Colombo, o jornal ilustrado O Moleque, o jornal republicano e abolicionista Tribuna Popular, o jornal A Cidade do Rio, a Folha Popular, o jornal O Tempo. João da Cruz e Sousa é autor, entre outros, de: Tropos e Fantasias (poemas em prosa, com Virgílio Várzea, 1885), Missal (poemas em prosa, 1893), Broquéis (poesia, 1893). Póstumos: Últimos Sonetos (1905), Evocações (poemas em prosa, 1898), Faróis (poesia, 1900), Outras evocações (poema em prosa, 1961), O livro Derradeiro (poesia, 1961), Dispersos (poemas em prosa, 1961)...
saber mais: Templo Cultural Delfos: Cruz e Souza - o cisne negro; literafro: Cruz e Sousa; Elisângela Medeiros de Oliveira: Cruz e Sousa: Literatura e a Questão “Racial” na Poesia Simbolista; Afro-Ásia - Elizabete Maria Espíndola: Cruz e Sousa: a verve satírica contra o preconceito e a discriminação; Biblioteca Digital - Elizabete Maria Espíndola: Cruz e Sousa: Modernidade e mobilidade social nas duas últimas décadas do século XIX; Sul 21: Apontamentos à margem da poesia e da vida de Cruz e Sousa; Miguel Sanches: Cruz e Sousa em Preto e Branco; Arlete Miranda Amancio, Joanna Souza de Miranda, Kárpio Márcio de Siqueira: Cruz e Souza: o negro como sujeito encurralado - um diálogo de resistência em ‘emparedado’; Adailton Almeida de Barros: A Lírica Colorida de Cruz e Sousa; Bárbara Poli Uliano Shinkawa: Faróis: Uma Releitura; Portal São Francisco - Cruz e Souza; Sabedoria Política: Cruz e Souza: O Dante Negro da Poesia Brasileira; Leonardo Pereira de Oliveira: A Tensão Lírica no Simbolismo de Cruz e Sousa; Alessandra Pereira Garuzzi e Denise Barros da Silva - Cruz e Sousa: entre o ato humano e desumano de criticar; Antonio Miranda: Cruz e Sousa; wikipédia: Cruz e Sousa.

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