quarta-feira, 20 de março de 2019

Cruz e Sousa: Poemas 2


No ano em que completa a mística dos 121 anos da morte de Cruz e Sousa, o grande mestre do simbolismo literário brasileiro, que nos deixou uma obra riquíssima, o Falas ao Acaso abre espaço para homenageá-lo, em três postagens. Para estas publicações selecionei poemas (ao meu gosto) dos livros Faróis (1900), Poemas  Humorísticos e Irônicos (?), Broquéis (1893) e Poesia Interminável (2002). Sua obra já se encontra em Domínio Público e na web (alguns links abaixo) há farto material de estudo..., bem como livros para download.

Ontem você conheceu sete intensos sonetos de amor e dor ressignificando a natureza feminina: Cabelos; Olhos; Boca; Seios; Mãos; Pés; Corpo..., e, de bônus, o poema Caveira, que desconstrói a beleza humana. Hoje compartilho a catarse (incômoda!) em quatro pertinentes poemas extraídos de Broquéis e Poemas Humorísticos e Irônicos: Cristo de Bronze; Levantem Esta Bandeira; Enquanto Este Sangue Ferve; Sapo Humano. Amanhã, na terceira postagem, a vez da paixão e da melancolia com poemas pinçados de Poesia Interminável e de Poemas Humorísticos e Irônicos.


      

CRISTO DE BRONZE
Cruz e Sousa (Broquéis)

Ó Cristos de ouro, de marfim, de prata,
Cristos ideais, serenos, luminosos,
Ensanguentados Cristos dolorosos
Cuja cabeça a Dor e a Luz retrata.

Ó Cristos de altivez intemerata,
Ó Cristos de metais estrepitosos
Que gritam como os tigres venenosos
Do desejo carnal que enerva e mata.

Cristos de pedra, de madeira e barro...
Ó Cristo humano, estético, bizarro,
Amortalhado nas fatais injúrias...

Na rija cruz aspérrima pregado
Canta o Cristo de bronze do Pecado,
Ri o Cristo de bronze das luxúrias!...



                                           
                                      
{Levantem Esta Bandeira}
Cruz e Sousa (Poemas Humorísticos e Irônicos)

Levantem esta bandeira
Da posição de farrapo;
Da terra azul brasileira
Levantem esta bandeira
Que sente o horror da esterqueira
Da escravidão — negro sapo.
Levantem esta bandeira
Da posição de farrapo.


{Enquanto Este Sangue Ferve}

Cruz e Sousa (Poemas Humorísticos e Irônicos)

Enquanto este sangue ferve
Com força, com toda a força,
Palpite a fibra da verve
Enquanto este sangue ferve
Esmague-se o que não serve
Na treva o Mal se contorça,
Enquanto este sangue ferve,
Com força, com toda a força.




        










SAPO HUMANO
Cruz e Sousa (Poemas Humorísticos e Irônicos)

a Emiliano Perneta

Oh sapo! eu vou cantar tuas misérias, sapo,
Vou tirar, nesse lodo onde habitas de rastros,
Umas vivas canções do teu nojento papo,
Da crosta esverdeada umas centelhas de astros.

E canções de tal forma e tais e tais centelhas,
Que todas possam ir, miraculosamente,
Transformadas, pelo ar, em rútilas abelhas
Com o íris voador de cada asa fulgente.

Que tu, tredo animal, tu, triste sapo hediondo,
Não és o vil, o torpe, o irracional, que a lama
Em camadas envolve o atro ventre redondo,
Dos tempos imortais nessa fecunda chama.

Não és o sapo histrião de imundas esterqueiras,
O sombrio Caim nos lamaçais errantes,
O clown gargalhador das charnecas rasteiras,
Que ri-se para o sol com riso ironizante.

Não és o sapo atroz, coaxador, visguento,
Que rouco ruge e raiva à noite os seus horrores,
E para o constelado e mudo firmamento
Faz ecoar os mais surdos e ásperos tambores.

Mas és o sapo humano, esse asqueroso e feio,
Nascido de roldão na lúgubre miséria
E que do mundo vão no pavoroso seio
Lembra o negro sarcasmo enorme da Matéria.

Mas és o sapo humano, o sapo mais abjeto
Do crime aterrador, do tenebroso vício,
Mas que ainda possuis o brilho de um afeto
Que te livra, talvez, do eterno precipício.

Por ora na tua alma a noite cruel, cerrada,
Não caiu de uma vez, como terrível fora;
Nela ainda há clarões de límpida alvorada,
Um prenúncio feliz de aurora redentora.

Ainda tens coração que pulsa no teu peito
Por uns filhos gentis, ingênuos, pequeninos,
Que são o grande amor, o sentimento eleito
Vencendo esses fatais instintos assassinos.

Tu semelhas de um charco a superfície nua
E vítrea, que no campo, aos ares, adormece,
Que se em cheio lhe bate a luz do sol, da lua,
Para a vasta amplidão cintila e resplandece.

Pois no teu organismo, assim sinistro e torvo,
Repleto de vibriões do vício — essas crianças,
Sorriem virginais, oh! solitário corvo,
Com sorrisos de luzes e barcarolas mansas.

O amor que regenera os ínfimos bandidos,
Não reduziu, enfim, tu'alma a ignóbil trapo.
E eis por que, num viver de pântano e gemidos,
Cantam dentro de ti aves e estrelas, sapo!

*
ilustrações de Joba Tridente.2019


João da Cruz e Sousa (Nossa Senhora do Desterro - SC: 24.11.1861 - Curral-MG: 19.03.1898), escritor de prosa e verso, abolicionista, precursor do movimento literário simbolista no Brasil, é considerado um dos maiores nomes da literatura brasileira. Negro, filho de pais alforriados e apadrinhado pelo ex-senhor Guilherme Xavier e Sousa e sua esposa Clarinda Xavier e Sousa, o gênio precoce Cruz e Sousa, a despeito de todo o preconceito racial sofrido durante a sua formação escolar, aproveitou cada minuto de ensino no famoso Ateneu Provincial Catarinense..., tendo se destacado em francês, inglês, latim, grego, matemática e história natural. Foi admirador e leitor de Antero de Quental, Gonçalves Crespo, Cesário Verde, Teófilo Dias, Ezequiel Freire, Bernardino Lopes, Guerra Junqueiro, Charles Baudelaire, Leconte de Lisle, Leopardi, Edgar Allan Poe, Joris-Karl Huysmans, Gustave Flaubert, Guy de Maupassant, Edmond de Goncourt e Jules de Goncourt, Theophile Gautier, Paul Verlaine, Auguste Villieirs de l’Isle Adam. Porém toda a sua cultura e erudição não foram suficientes para quebrar a parede do racismo que o bloqueava aos cargos a que estava habilitado. Cruz e Sousa foi fundador e colaborador de vários veículos literários, como o jornal semanal Colombo, o jornal ilustrado O Moleque, o jornal republicano e abolicionista Tribuna Popular, o jornal A Cidade do Rio, a Folha Popular, o jornal O Tempo. João da Cruz e Sousa é autor, entre outros, de: Tropos e Fantasias (poemas em prosa, com Virgílio Várzea, 1885), Missal (poemas em prosa, 1893), Broquéis (poesia, 1893). Póstumos: Últimos Sonetos (1905), Evocações (poemas em prosa, 1898), Faróis (poesia, 1900), Outras evocações (poema em prosa, 1961), O livro Derradeiro (poesia, 1961), Dispersos (poemas em prosa, 1961)...
saber mais: Templo Cultural Delfos: Cruz e Souza - o cisne negro; literafro: Cruz e Sousa; Elisângela Medeiros de Oliveira: Cruz e Sousa: Literatura e a Questão “Racial” na Poesia Simbolista; Afro-Ásia - Elizabete Maria Espíndola: Cruz e Sousa: a verve satírica contra o preconceito e a discriminação; Biblioteca Digital - Elizabete Maria Espíndola: Cruz e Sousa: Modernidade e mobilidade social nas duas últimas décadas do século XIX; Sul 21: Apontamentos à margem da poesia e da vida de Cruz e Sousa; Miguel Sanches: Cruz e Sousa em Preto e Branco; Arlete Miranda Amancio, Joanna Souza de Miranda, Kárpio Márcio de Siqueira: Cruz e Souza: o negro como sujeito encurralado - um diálogo de resistência em ‘emparedado’; Adailton Almeida de Barros: A Lírica Colorida de Cruz e Sousa; Bárbara Poli Uliano Shinkawa: Faróis: Uma Releitura; Portal São Francisco - Cruz e Souza; Sabedoria Política: Cruz e Souza: O Dante Negro da Poesia Brasileira; Leonardo Pereira de Oliveira: A Tensão Lírica no Simbolismo de Cruz e Sousa; Alessandra Pereira Garuzzi e Denise Barros da Silva - Cruz e Sousa: entre o ato humano e desumano de criticar; Antonio Miranda: Cruz e Sousa; wikipédia: Cruz e Sousa.

2 comentários:

  1. Que belas ilustrações, Joba. É sempre revigorante ler Cruz e Sousa, e atualíssimo, seja na bandeira brasileira, seja no sapo - é só trocar o nome do Emiliano por outro. Abraço amigo.

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    1. ..., olá, Carlos! ..., sim, quando estava selecionando pensei (também) nessa possibilidade de releitura no atual contexto. ..., ah, o tempo! ..., gratíssimo pela visita e considerações.

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