No ano em que completa a mística dos 121 anos da
morte de Cruz e Sousa, o grande
mestre do simbolismo literário brasileiro, que nos deixou uma obra riquíssima,
o Falas ao Acaso abre espaço para homenageá-lo,
em três postagens. Para estas
publicações selecionei poemas (ao meu gosto) dos livros Faróis (1900), Poemas Humorísticos e Irônicos (?), Broquéis (1893) e Poesia Interminável (2002). Sua obra já se encontra em Domínio
Público e na web (alguns links
abaixo) há farto material de estudo..., bem como livros para download.
Ontem você conheceu sete intensos sonetos de amor e dor ressignificando a natureza feminina: Cabelos;
Olhos; Boca; Seios; Mãos; Pés; Corpo..., e, de
bônus, o poema Caveira, que
desconstrói a beleza humana. Hoje compartilho a catarse (incômoda!) em quatro pertinentes poemas extraídos de Broquéis e Poemas Humorísticos e Irônicos: Cristo
de Bronze; Levantem Esta Bandeira; Enquanto Este Sangue Ferve; Sapo
Humano. Amanhã, na terceira postagem, a vez da paixão e da melancolia
com poemas pinçados de Poesia
Interminável e de Poemas Humorísticos e Irônicos.
CRISTO DE BRONZE
Cruz e Sousa (Broquéis)
Ó Cristos de ouro,
de marfim, de prata,
Cristos ideais,
serenos, luminosos,
Ensanguentados
Cristos dolorosos
Cuja cabeça a Dor e
a Luz retrata.
Ó Cristos de altivez
intemerata,
Ó Cristos de metais
estrepitosos
Que gritam como os
tigres venenosos
Do desejo carnal que
enerva e mata.
Cristos de pedra, de
madeira e barro...
Ó Cristo humano,
estético, bizarro,
Amortalhado nas
fatais injúrias...
Na rija cruz
aspérrima pregado
Canta o Cristo de
bronze do Pecado,
Ri o Cristo de
bronze das luxúrias!...
{Levantem Esta Bandeira}
Cruz e Sousa (Poemas Humorísticos e Irônicos)
Levantem esta
bandeira
Da posição de
farrapo;
Da terra azul
brasileira
Levantem esta
bandeira
Que sente o horror
da esterqueira
Da escravidão —
negro sapo.
Levantem esta
bandeira
Da posição de
farrapo.
{Enquanto Este Sangue Ferve}
Cruz e Sousa (Poemas Humorísticos e Irônicos)
Enquanto este
sangue ferve
Com força, com
toda a força,
Palpite a fibra
da verve
Enquanto este
sangue ferve
Esmague-se o
que não serve
Na treva o Mal
se contorça,
Enquanto este
sangue ferve,
Com força, com
toda a força.
Cruz e Sousa (Poemas Humorísticos e Irônicos)
a Emiliano Perneta
Oh sapo! eu vou
cantar tuas misérias, sapo,
Vou tirar, nesse
lodo onde habitas de rastros,
Umas vivas canções
do teu nojento papo,
Da crosta esverdeada
umas centelhas de astros.
E canções de tal
forma e tais e tais centelhas,
Que todas possam ir,
miraculosamente,
Transformadas, pelo
ar, em rútilas abelhas
Com o íris voador de
cada asa fulgente.
Que tu, tredo
animal, tu, triste sapo hediondo,
Não és o vil, o
torpe, o irracional, que a lama
Em camadas envolve o
atro ventre redondo,
Dos tempos imortais
nessa fecunda chama.
Não és o sapo
histrião de imundas esterqueiras,
O sombrio Caim nos
lamaçais errantes,
O clown gargalhador das charnecas
rasteiras,
Que ri-se para o sol
com riso ironizante.
Não és o sapo atroz,
coaxador, visguento,
Que rouco ruge e
raiva à noite os seus horrores,
E para o constelado
e mudo firmamento
Faz ecoar os mais
surdos e ásperos tambores.
Mas és o sapo
humano, esse asqueroso e feio,
Nascido de roldão na
lúgubre miséria
E que do mundo vão
no pavoroso seio
Lembra o negro
sarcasmo enorme da Matéria.
Mas és o sapo
humano, o sapo mais abjeto
Do crime aterrador,
do tenebroso vício,
Mas que ainda
possuis o brilho de um afeto
Que te livra,
talvez, do eterno precipício.
Por ora na tua alma
a noite cruel, cerrada,
Não caiu de uma vez,
como terrível fora;
Nela ainda há
clarões de límpida alvorada,
Um prenúncio feliz
de aurora redentora.
Ainda tens coração
que pulsa no teu peito
Por uns filhos
gentis, ingênuos, pequeninos,
Que são o grande
amor, o sentimento eleito
Vencendo esses
fatais instintos assassinos.
Tu semelhas de um
charco a superfície nua
E vítrea, que no
campo, aos ares, adormece,
Que se em cheio lhe
bate a luz do sol, da lua,
Para a vasta
amplidão cintila e resplandece.
Pois no teu
organismo, assim sinistro e torvo,
Repleto de vibriões
do vício — essas crianças,
Sorriem virginais,
oh! solitário corvo,
Com sorrisos de
luzes e barcarolas mansas.
O amor que regenera
os ínfimos bandidos,
Não reduziu, enfim,
tu'alma a ignóbil trapo.
E eis por que, num
viver de pântano e gemidos,
Cantam dentro de ti
aves e estrelas, sapo!
*
ilustrações de Joba Tridente.2019
João da Cruz e Sousa (Nossa Senhora do Desterro - SC:
24.11.1861 - Curral-MG: 19.03.1898), escritor de prosa e verso, abolicionista,
precursor do movimento literário simbolista no Brasil, é considerado um dos
maiores nomes da literatura brasileira. Negro, filho de pais alforriados e
apadrinhado pelo ex-senhor Guilherme Xavier e Sousa e sua esposa Clarinda
Xavier e Sousa, o gênio precoce Cruz e Sousa, a despeito de todo o preconceito
racial sofrido durante a sua formação escolar, aproveitou cada minuto de ensino
no famoso Ateneu Provincial Catarinense..., tendo se destacado em francês,
inglês, latim, grego, matemática e história natural. Foi admirador e leitor de
Antero de Quental, Gonçalves Crespo, Cesário Verde, Teófilo Dias, Ezequiel
Freire, Bernardino Lopes, Guerra Junqueiro, Charles Baudelaire, Leconte de
Lisle, Leopardi, Edgar Allan Poe, Joris-Karl Huysmans, Gustave Flaubert, Guy de
Maupassant, Edmond de Goncourt e Jules de Goncourt, Theophile Gautier, Paul
Verlaine, Auguste Villieirs de l’Isle Adam. Porém toda a sua cultura e erudição
não foram suficientes para quebrar a parede do racismo que o bloqueava aos
cargos a que estava habilitado. Cruz e Sousa foi fundador e colaborador de
vários veículos literários, como o jornal semanal Colombo, o jornal ilustrado O Moleque,
o jornal republicano e abolicionista Tribuna
Popular, o jornal A Cidade do
Rio, a Folha Popular,
o jornal O Tempo. João da Cruz e
Sousa é autor, entre outros, de: Tropos e
Fantasias (poemas em prosa, com Virgílio Várzea, 1885), Missal (poemas em prosa, 1893), Broquéis (poesia, 1893). Póstumos: Últimos Sonetos (1905), Evocações (poemas em prosa, 1898), Faróis (poesia, 1900), Outras evocações (poema em prosa,
1961), O livro Derradeiro (poesia,
1961), Dispersos (poemas em
prosa, 1961)...
saber mais: Templo Cultural Delfos: Cruz e Souza - o cisne negro; literafro: Cruz e Sousa; Elisângela Medeiros de Oliveira: Cruz e Sousa: Literatura e a Questão
“Racial” na Poesia Simbolista; Afro-Ásia - Elizabete Maria Espíndola: Cruz e Sousa: a verve satírica contra
o preconceito e a discriminação; Biblioteca Digital - Elizabete Maria Espíndola: Cruz e
Sousa: Modernidade e mobilidade social nas
duas últimas décadas do século XIX; Sul 21: Apontamentos à margem da poesia e da vida de Cruz e Sousa; Miguel Sanches: Cruz e Sousa em Preto e Branco; Arlete Miranda Amancio, Joanna
Souza de Miranda, Kárpio Márcio de Siqueira: Cruz e Souza: o negro como sujeito
encurralado - um diálogo de resistência em ‘emparedado’; Adailton Almeida de Barros: A Lírica Colorida de Cruz e Sousa; Bárbara Poli Uliano Shinkawa: Faróis: Uma Releitura; Portal São Francisco - Cruz e Souza; Sabedoria Política: Cruz e Souza: O Dante Negro da Poesia
Brasileira; Leonardo
Pereira de Oliveira: A Tensão Lírica no Simbolismo de Cruz
e Sousa; Alessandra
Pereira Garuzzi e Denise Barros da Silva - Cruz e Sousa: entre o ato humano e
desumano de criticar;
Antonio Miranda: Cruz e Sousa; wikipédia: Cruz e Sousa.
Que belas ilustrações, Joba. É sempre revigorante ler Cruz e Sousa, e atualíssimo, seja na bandeira brasileira, seja no sapo - é só trocar o nome do Emiliano por outro. Abraço amigo.
ResponderExcluir..., olá, Carlos! ..., sim, quando estava selecionando pensei (também) nessa possibilidade de releitura no atual contexto. ..., ah, o tempo! ..., gratíssimo pela visita e considerações.
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