quarta-feira, 3 de junho de 2020

Poetas da 2ª Guerra: Tasos Leivaditis e Gerrit Kouwenaar



POETAS da 2ª GUERRA
Tasos Leivaditis Gerrit Kouwenaar

Certo dia, vagando pela internet, à busca de informações sobre alguns autores (para compor suas biografias), dei de cara com o ebook Segunda Guerra Mundial - Uma Antologia Poética (2014), que reúne poetas contemporâneos ao conflito e conta com a organização, seleção, edição e notas do escritor Sammis Reachers. Arquivei a edição grátis (em PDF) para pesquisa e escolha de algum autor para futura postagem. Bem, creio que os 75 anos que marcam o “fim” de uma das maiores tragédias praticadas pelo homem contra o homem é o momento propício para uma sempre pertinente reflexão sobre a ganância e a estupidez humanas. Dos 49 autores publicados na antologia Segunda Guerra Mundial, selecionei 12: Carlos Drummond de Andrade (Visão 1944), Cecília Meireles (Pistóia - Cemitério Militar Brasileiro), Murilo Mendes (Tempos Duros), Tasos Leivaditis (Esta estrela é para todos nós), Gerrit Kouwenaar (Terceiro Canto Heróico), János Pilinszky (Paixão de Ravensbrück), KeithDouglas (Vergissmeinnicht), Salvatore Quasímodo (Milão, Agosto de 1943), Sadako Kurihara (Dizendo “Hiroshima”), BertoltBrecht (Regresso), Jaroslav Seifert (Os mortos de Lídice), Marina Tzvietáieva (Tomaram...).

No prefácio de Segunda Guerra Mundial - Uma Antologia Poética, Sammis Reachers, que já organizou mais de uma dezena de antologias, principalmente religiosas, como a Antologia de Poesia Cristã em Língua Portuguesa (2008) e a Breve Antologia da Poesia Cristã Universal (2012), diz que o seu interesse pelo tema da Segunda Guerra Mundial, expressado em seu livro  Poemas da Guerra de Inverno (2012/2014), vem desde a infância, antes mesmo do seu apreço pela literatura. Na difícil seleção de obras para a antologia da Segunda Guerra, Sammis Reachers buscou “apenas poemas de autores contemporâneos ao conflito, e de países diretamente envolvidos na guerra. Sejam war poets “clássicos” (soldados-poetas que participaram em algum momento da guerra, engajados em exércitos regulares), sejam vítimas (população de países subjugados, judeus e minorias étnicas, críticos e inimigos ideológicos do regime), sejam partisans e combatentes das resistências que pululavam nas mais diversas frentes do conflito. E também o que se poderia chamar de poetas expectadores, que, embora nativos de países envolvidos na guerra, apenas a acompanharam pelos canais noticiosos, caso de alguns poetas dos EUA e de outros países americanos, como o chileno Pablo Neruda e brasileiros como Carlos Drummond de Andrade, Murilo Mendes e outros.”

Nota: Como alguns poemas são longos, farei cinco postagens, reunindo dois e ou três autores em cada uma. As ilustrações (2020) são de Joba Tridente.


       
            Esta estrela é para todos nós (excerto)
Tasos Leivaditis
Tradução: Manuel Resende

I
Anoitecia depressa.
O vento vinha de longe cheirando a chuva
e guerra.
Os comboios cheios de soldados passavam rápidos
mal conseguíamos vê-los por detrás das vidraças.
Fechavam o horizonte grandes capacetes de aço.
Rebrilhava o asfalto molhado. Por detrás das janelas
as mulheres debulhavam umas favas secas em silêncio.
E os passos da sentinela
roubavam o silêncio à rua e o calor ao mundo.
Vá, volta os teus olhos, que eu quero fitar o céu,
dá-me a tua mão, que eu quero apertar a minha vida.
Como estás pálida, minha amada!
Como se a noite nos batesse à porta. A tua mãe,
arrastando as grossas socas, foi abrir.
Ninguém. Ninguém, repetiu. Será o vento.
Nós, apertamo-nos um ao outro. É que sabíamos,
é que sabíamos, minha amada, que não era o vento.
Milhares de humanos morriam lá fora da nossa porta.
Olha como o nosso bairro está deserto, minha amada.
O vento entra e sai pelas brechas das casas
as paredes umedecem, incham e depois caem em ruínas.
Para onde foram tantos vizinhos sem se despedirem,
deixando o banco de pedra meio por caiar
o sorriso meio por acabar.
É como se alguém dobrasse a esquina e nunca mais o víssemos.
Como se disséssemos bom dia e caísse de súbito a noite.
Mas para onde vai esta gente toda?
Também aquele amolador louro que cantava pelas manhãs
foi fuzilado
Também o do quiosque que nos dava o troco sorrindo
foi fuzilado
e o rapaz que pesava o carvão - lembras-te dele, a sério?,
foi fuzilado. A carroça ficou de pernas para o ar na esquina. 69

A amada dele agora há-de fitar de frente a noite
Há-de dobrar-se como um cão a cheirar a camisa dele.
E o carteiro que com a voz abria as janelas
foi fuzilado.
Vá, vá, afasta a tua boca vermelha de mim, Maria.
Tenho frio.
Esta noite, em todas as paredes é fuzilada a vida.

Minha amada
amo-te muito mais do que posso dizer com as palavras
queria morrer contigo, se alguma vez morresses,
e, no entanto, minha amada, não poderia
não poderia já amar-te como já te amei.
Fechávamos a porta atrás de nós e tínhamos frio
fechávamos as janelas e tínhamos mais frio
e ao voltar-me para ver os teus olhos
vi os olhos da vizinha a quem mataram quatro filhos
e ao estender a minha mão para a tua
era como se roubasse o pão da mão dos que tinham fome.
Abraçavas-me
e eu por cima do teu ombro olhava a rua.
E quando queríamos falar, calávamo-nos de súbito.
Escutávamos da janela aberta lá ao longe
os passos dos moribundos.
Como pode o nosso cobertor aquecer tanto gelo,
Como pode a porta proteger-nos de toda esta noite?
Entre nós os humanos deitaram a sua grande sombra.
Que vai ser de nós, amada?

Amada minha, ouves?
Não, não é o vento, vem de mais longe.
Dir-se-ia que milhares de passos descem as ruas,
Milhares de botas martelam os seus pregos no asfalto.
Aonde vão? Será que podem ir-se embora?
Como posso viver longe de ti, minha amada,
Como posso acender um candeeiro senão para te ver?
Como posso fitar uma parede por onde não perpassa a tua sombra?
Como posso apoiar-me numa mesa onde não apoias as mãos?
Uma fatia de pão que não repartimos, como posso tocá-la?
Mas não para de crescer este ruído.
Não se consegue dormir. Não há canto onde a gente se sente.
Não, não é o vento, vem de mais longe.
Vá, minha amada, corta o lençol,
rasga o teu vestido e tapa as brechas.
As pessoas enchem à pressa as trouxas com todos os seus pertences
porque todos os seus pertences não são mais
do que um pouco de pão, uma recordação e o seu amor à vida.
Depois, beijam-se e desaparecem na noite.

Depois ficamos nós. Onde ficamos? Porque ficamos?
Como hei-de abrir uma porta se não for para ir ter contigo?
Como hei-de atravessar uma soleira se não for para te encontrar?
Não, não podia viver longe de ti, amada minha.
Mas esta noite em todas as esquinas esperam-nos as pessoas.
Dá-me a tua boca por um momento. E prepara a minha trouxa, Maria.



                 
Terceiro Canto Heroico
Gerrit Kouwenaar
Tradução: August Willemsen e Egito Gonçalves

Na véspera da paz mandou-nos o nosso omnipotente
pai major a mim e a mais seis para o silêncio
da morte noturna, rumo
ao inimigo supostamente derrotado

sete batedores na fronteira
de quase tudo: guerra carne vida, caindo
em meio da névoa na armadilha: apenas eu
como por milagre fui poupado

enterraram-se no local
entre eles o meu companheiro inseparável
de quatro anos de trincheira

seis meses mais tarde, já primavera, eu estudava
ciências humanas na cidade, bebia cerveja, comia
bifes, mulheres, veio
o pai dele, disse: você
está vivo, era
companheiro dele, sabe
onde está sepultado, então ajude-me
a desenterrá-lo, é proibido, bem sei, mas é claro
que ele tem de ficar conosco no jardim

que podia eu fazer, fiz, cavei,
desenterrei-o com o pai, reconheci-o
pelo número da plaquinha, ele pendia
desengonçado, tépida massa mole, minha mão
afundou-se no cadáver até ao punho, tão assustada
com a matéria que desastradamente
fez um buraco

após o enterro, ele clandestino na sua própria terra, estava eu
na sala de jantar deles com a mãe a irmã o pai, bebendo
um copinho de lágrimas, conversando
em torno do seu retrato de menino
e contava: íamos juntos agachados, falávamos
em voz baixa acerca de um futuro melhor, fumávamos
juntos um cigarro belga, juntos não suspeitávamos
nenhum perigo / ele era
soldado corajoso, obediente
com dignidade, amava
mozart, wagner a pátria, prestava atenção
ao sussurro das suas árvores / escondi
pouco da sua verdade, só omiti
o indizível putas e pulgas e de que modo
estraçalhávamos como carniceiros

pois é, era primavera no jardim
onde o enterramos sussurrava
o plátano, árvore fazedora de mãos, no ar
havia algo perfeito, acabado, per-
feito finalmente, até a lua
parecia novinha, sua irmã carnal estava suspensa
dos meus lábios, lá pelo fim de Abril
num corpo apertado, a groselheira
perfumava a terra, a minha mão tocou-lhe
os seios, a minha mão

tocou-lhe os seios e era
a mesma tépida massa mole, a mesma
tépida massa mole, o mesmo material
simplesmente o mesmo, e era
esta mesma mão, esta


Tasos Leivaditis (Atenas/Grécia: 20.04.1922 – 30.10.1988): escritor de prosa e verso; ensaísta; roteirista; crítico literário. Ativo na literatura e na resistência grega durante a ocupação nazistas e opositor ferrenho do regime militar, Leivaditis, que apostou na literatura desde muito jovem, publicou o seu primeiro poema na revista Elefthera Grammata, foi um dos fundadores da revista literária Themelio e crítico literário (1954 a 1967) do jornal Avgi. Perseguido, aprisionado e exilado, pelas suas ideias e literatura consideradas subversivas, como o poema Sopra o Vento nas Esquinas do Mundo (1955), que foi censurado na Grécia e premiado no Festival Mundial da Juventude (1955), em Varsóvia. Tasos Leivaditis, que recebeu vários prêmios nacionais e internacionais, é autor, entre outros, de Batalha na Extrema da Noite; Esta Estrela É para Todos Nós; Sopra o Vento nas Esquinas do Mundo; Os Manuscritos do Outono. 
Para saber mais: Site Oficial: Leivaditis Tasso; Wikipédia: Tassos Leivaditis; Angelus Novus: Tasos Leivaditis; Tasos Leivaditis: This Star Is For All Of Us; SemanticScholar - Vagia Kalfa: The poetics of Tasos Leivaditis: from extroversion to introversion; Mascara Review: Andy Jackson reviews The Blind Man With The Lamp by Tasos Leivaditis; Australian Poetry Journal: Found in Translation: on translating Tasos Leivaditis; Behance/Animação Vimeo - Afroditi Bitzouni: Tasos Livaditis, Night Visitor; Erato - Revista Internacional de Poesia: Tasos Livaditis, Anotaciones; La biblioteca de Marcelo Leite: Tasos Livaditis - Breves ejercicios de olvido; Revista Altazor: Tasos Livaditis: Pequeños ejercicios de olvido;

Manuel Resende (Porto/Portugal: 09.03.1948 - Almada/Portugal: 09.03.1948 - Almada/Portugal: 29.01.2020): engenheiro, jornalista, escritor e tradutor de Gérard Lenne, Henry James, Yukio Mishima, Karl Max, Lewis Carrol, Saki, William Shakespeare, Tasos Livaditis, Charles Bukowski, Peter Sloterdijk, Katherine Mansfield, Peter Sloterdijk, J. M. Keynes. A sua poesia é considerada "anarquista na forma e surrealista no conteúdo”. Para Graça Fonseca, a obra poética de Manuel Resende é tão curta quanto intensa, é herdeira e próxima das tradições literárias surrealistas, mas a sua originalidade nunca se deixou limitar por movimentos e grupos. Resende se especializou na tradução do grego moderno e publicou três livros, atribuidos ao heterónimo (Mika Ahtisaari) e três inéditos e esparsos: Natureza Morta com Desodorizante (1983); Em Qualquer Lugar (1998); O Mundo Clamoroso, Ainda (2004); Poesia Reunida (2018).

  
Gerrit Kouwenaar (Amsterdã/Holanda: 09.08.1923 - 04.09.2014): jornalista, escritor de prosa e verso e tradutor de Bertold Brecht, Friedrich Dürrenmatt, Rolf Hochhuth, Peter Ulrich Weiss, Franz Xaver Kroetz, Jean-Paul Sartre, Tennessee Williams, Tom Stoppard, John James Osborne, Harold Pinter. Kouwenaar integrou o grupo de poesia experimental Vijftigers, escreveu para revistas e jornais como Vrij Nederland, De WaarheidHet Vrije Volk, Parade der Profeten e participou da resistência holandesa na Segunda Guerra Mundial. Entre 1958 e 2009 o escritor recebeu 12 prêmios, entre eles o Henriette Roland Holst-prijs (conjunto da obra, 1967), Martinus Nijhoff Prijs (tradução teatral, 1967), P.C. Hooft-prijs (conjunto da obra, 1970) e o Prijs voor Meesterschap (2009), concedido pela Sociedade de Literatura Holandesa.  A sua extensa bibliografia pode ser conferida aqui.
Para saber mais: Wikipédia: Gerrit Kouwenaar; Cobra Museum: Gerrit Kouwenaar; Letterenfonds: The Poetry of Gerrit Kouwenaar; The Enchanting Verses: Gerrit Kouwenaar; Poezie Centrum: In Memoriam Gerrit Kouwenaar; Literatuur: Gerrit Kouwenaar.

August Willemsen (Amsterdã/Holanda: 16.06.1936 – 29.11.2007): escritor, ensaísta e tradutor holandês de literatura portuguesa e brasileira. Willemsen..., que traduziu Fernando Pessoa, Luiz Vaz de Camões, Carlos Drummond de Andrade, Machado de Assis, João Cabral de Melo Neto, Graciliano Ramos, João Guimarães Rosa, Trevisan, Euclides da Cunha, Chico Buarque, Manuel Bandeira, Ivo Ledo, Ferreira Gular, Antonio Torres..., começou a estudar o português já em idade avançada recebeu o Martinus Nijhoff-prijs (de tradução, 1983) e, em 1986, o Lucy B. en C.W. van der Hoogtprijs por Braziliaanse brieven (Cartas Brasileiras). A sua bibliografia pode ser conferida aqui.

José Egito de Oliveira Gonçalves (Matosinho/Portugal: 08.04.1920 – Porto/Portugal: 28.01.2001): escritor, tradutor, editor e diretor de revistas literárias como A Serpente (1951), Árvore (1951-1953), Notícias do Bloqueio (1957-1961), Plano (1965-1968), Limiar. Por suas traduções de excelência, Egito Oliveira recebeu o Prémio de Tradução Calouste Gulbenkian (1977) da Academia das Ciências de Lisboa (pela seleção de Poemas da Resistência Chilena), o Prémio Internacional Nicola Vaptzarov (1985), da União de Escritores Búlgaros, o Prémio de Poesia do P.E.N. Clube Português (1985), o Prémio Eça de Queirós (1985) e o Grande Prémio de Poesia da Associação Portuguesa de Escritores (1985) com o livro E No Entanto Move-se. Confira a sua bibliografia aqui aqui.

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