terça-feira, 2 de junho de 2020

Poetas da 2ª Guerra: Drummond, Cecília Meireles, Murilo Mendes



POETAS da 2ª GUERRA
Drummond Cecília Meireles Murilo Mendes

Certo dia, vagando pela internet, à busca de informações sobre alguns autores (para compor suas biografias), dei de cara com o ebook Segunda Guerra Mundial - Uma Antologia Poética (2014), que reúne poetas contemporâneos ao conflito e conta com a organização, seleção, edição e notas do escritor Sammis Reachers. Arquivei a edição grátis (em PDF) para pesquisa e escolha de algum autor para futura postagem. Bem, creio que os 75 anos que marcam o “fim” de uma das maiores tragédias praticadas pelo homem contra o homem é o momento propício para uma sempre pertinente reflexão sobre a ganância e a estupidez humanas. Dos 49 autores publicados na antologia Segunda Guerra Mundial, selecionei 12: Carlos Drummond de Andrade (Visão 1944), Cecília Meireles (Pistóia - Cemitério Militar Brasileiro), Murilo Mendes (Tempos Duros), Tasos Leivaditis (Esta estrela é para todos nós), Gerrit Kouwenaar (Terceiro Canto Heróico), János Pilinszky (Paixão de Ravensbrück), KeithDouglas (Vergissmeinnicht), Salvatore Quasímodo (Milão, Agosto de 1943), Sadako Kurihara (Dizendo “Hiroshima”), BertoltBrecht (Regresso), Jaroslav Seifert (Os mortos de Lídice), Marina Tzvietáieva (Tomaram...).

No prefácio de Segunda Guerra Mundial - Uma Antologia Poética, Sammis Reachers, que já organizou mais de uma dezena de antologias, principalmente religiosas, como a Antologia de Poesia Cristã em Língua Portuguesa (2008) e a Breve Antologia da Poesia Cristã Universal (2012), diz que o seu interesse pelo tema da Segunda Guerra Mundial, expressado em seu livro  Poemas da Guerra de Inverno (2012/2014), vem desde a infância, antes mesmo do seu apreço pela literatura. Na difícil seleção de obras para a antologia da Segunda Guerra, Sammis Reachers buscou “apenas poemas de autores contemporâneos ao conflito, e de países diretamente envolvidos na guerra. Sejam war poets “clássicos” (soldados-poetas que participaram em algum momento da guerra, engajados em exércitos regulares), sejam vítimas (população de países subjugados, judeus e minorias étnicas, críticos e inimigos ideológicos do regime), sejam partisans e combatentes das resistências que pululavam nas mais diversas frentes do conflito. E também o que se poderia chamar de poetas expectadores, que, embora nativos de países envolvidos na guerra, apenas a acompanharam pelos canais noticiosos, caso de alguns poetas dos EUA e de outros países americanos, como o chileno Pablo Neruda e brasileiros como Carlos Drummond de Andrade, Murilo Mendes e outros.”

Nota: Como alguns poemas são longos, farei cinco postagens, reunindo dois e ou três autores em cada uma. As ilustrações (2020) são de Joba Tridente.


                       

Visão 1944
Carlos Drummond de Andrade

Meus olhos são pequenos para ver
a massa de silêncio concentrada
por sobre a onda severa, piso oceânico
esperando a passagem dos soldados.

Meus olhos são pequenos para ver
luzir na sombra a foice da invasão
e os olhos no relógio, fascinados,
ou as unhas brotando em dedos frios.

Meus olhos são pequenos para ver
o general com seu capote cinza
escolhendo no mapa uma cidade
que amanhã será pó e pus no arame.

Meus olhos são pequenos para ver
a bateria de rádio prevenindo
vultos a rastejar na praia obscura
aonde chegam pedaços de navios.

Meus olhos são pequenos para ver
o transporte de caixas de comida,
de roupas, de remédios, de bandagens
para um porto da Itália onde se morre.

Meus olhos são pequenos para ver
o corpo pegajento das mulheres
que foram lindas, beijo cancelado
na produção de tanques e granadas.

Meus olhos são pequenos para ver
a distância da casa na Alemanha
a uma ponte na Rússia,
onde retratos, cartas, dedos de pé boiam em sangue.

Meus olhos são pequenos para ver
uma casa sem fogo e sem janela
sem meninos em roda, sem talher,
sem cadeira, lampião, catre, assoalho.

Meus olhos são pequenos para ver
os milhares de casas invisíveis
na planície de neve onde se erguia
uma cidade, o amor e uma canção.

Meus olhos são pequenos para ver
as fábricas tiradas do lugar, 22
levadas para longe, num tapete,
funcionando com fúria e com carinho.

Meus olhos são pequenos para ver
na blusa do aviador esse botão
que balança no corpo, fita o espelho
e se desfolhará no céu de outono.

Meus olhos são pequenos para ver
o deslizar do peixe sob as minas,
e sua convivência silenciosa
com os que afundam, corpos repartidos.

Meus olhos são pequenos para ver
os coqueiros rasgados e tombados
entre latas, na areia, entre formigas
incompreensivas, feias e vorazes.

Meus olhos são pequenos para ver
a fila de judeus de roupa negra,
de barba negra, prontos a seguir
para perto do muro - e o muro é branco.

Meus olhos são pequenos para ver
essa fila de carne em qualquer parte,
de querosene, sal ou de esperança
que fugiu dos mercados deste tempo.

Meus olhos são pequenos para ver
a gente do Pará e de Quebec
sem notícias dos seus e perguntando
ao sonho, aos passarinhos, às ciganas.

Meus olhos são pequenos para ver
todos os mortos, todos os feridos,
e este sinal no queixo de uma velha
que não pôde esperar a voz dos sinos.

Meus olhos são pequenos para ver
países mutilados como troncos,
proibidos de viver, mas em que a vida
lateja subterrânea e vingadora.

Meus olhos são pequenos para ver
as mãos que se hão de erguer, os gritos roucos,
os rios desatados, e os poderes
ilimitados mais que todo exército.

Meus olhos são pequenos para ver 23
toda essa força aguda e martelante,
a rebentar do chão e das vidraças,
ou do ar, das ruas cheias e dos becos.

Meus olhos são pequenos para ver
tudo que uma hora tem, quando madura,
tudo que cabe em ti, na tua palma,
ó povo! que no mundo te dispersas.

Meus olhos são pequenos para ver
atrás da guerra, atrás de outras derrotas,
esta imagem calada, que se aviva,
que ganha em cor, em forma e profusão.

Meus olhos são pequenos para ver
tuas sonhadas ruas, teus objetos,
e uma ordem consentida (puro canto,
vai pastoreando sonos e trabalhos).

Meus olhos são pequenos para ver
esta mensagem franca pelos mares,
entre coisas outrora envilecidas
e agora a todos, todas ofertadas.

Meus olhos são pequenos para ver
o mundo que se esvai em sujo e sangue,
outro mundo que brota, qual nelumbo
- mas veem, pasmam, baixam deslumbrados.



                
                     Pistóia - Cemitério Militar Brasileiro
Cecília Meireles

Eles vieram felizes, como
para grandes jogos atléticos,
com um largo sorriso no rosto,
com forte esperança no peito,
- porque eram jovens e eram belos.

Marte, porem soprava fogo
por estes campos e estes ares.
E agora estão na calma terra,
sob estas cruzes e estas flores,
cercados por montanhas suaves.

São como um grupo de meninos
num dormitório sossegado,
com lençóis de nuvens imensas,
e um longo sono sem suspiros,
de profundíssimo cansaço.

Suas armas foram partidas
ao mesmo tempo que seu corpo.
E, se acaso sua alma existe,
com melancolia recorda
o entusiasmo de cada morto.

Este cemitério tão puro
é um dormitório de meninos:
e as mães de muito longe chamam,
entre as mil cortinas do tempo
cheias de lágrimas, seus filhos.

Chamam por seus nomes, escritos
nas placas destas cruzes brancas.
Mas, com seus ouvidos quebrados,
com seus lábios gastos de morte,
que hão de responder estas crianças?

E as mães esperam que ainda acordem,
como foram, fortes e belos,
depois deste rude exercício,
desta metralha e deste sangue,
destes falsos jogos atléticos.

Entretanto, céu, terra, flores,
é tudo horizontal silêncio.
O que foi chaga, é seiva e aroma,
- do que foi sonho não se sabe
e a dor vai longe, no vento...



                       
                                          Tempos Duros
Murilo Mendes

A aurora desce a viseira:
O monumento ao deserdado desconhecido
Acorda coberto de sangue.

O mar furioso devolve à praia
Alianças de casamento dos torpedeados
E a fotografia de um assassino,
Aos cinco anos – inocente – num velocípede.

Alguém parte o pão dos pássaros.
O ar espesso entre os sinos
Empurra o espanto das árvores.

Longas filas de homens e crianças
Caminham pelas mornas avenidas
Em busca de ração de sal, azeite e ódio.

E a morte vem recolher
A parte de lucidez
Que durante tanto tempo
Escondera sob os véus.


Carlos Drummond de Andrade (Itabira: 31.10.1902 - Rio de Janeiro: 17.08.1987): cronista, escritor de prosa e verso e farmacêutico formado pela Universidade Federal de Minas Gerais. Drummond, que foi funcionário público, se dedicou à literatura desde muito jovem, tendo o seu primeiro livro, Alguma Poesia, publicado em 1930. O escritor, que foi um dos fundadores da A Revista, para divulgar o movimento modernista no Brasil, também colaborou com publicações como Mundo Literário e Atlântico. A sua bibliografia, que inclui poesia, crônica, conto e literatura infantil é extensa e pode ser conferida aqui.

Cecília Benevides de Carvalho Meireles (Rio de Janeiro-RJ, 1901 - Rio de Janeiro-RJ, 1964). Escritora de verso e prosa, professora, artista plástica e jornalista. Um dos maiores nomes femininos da literatura brasileira. Ela é responsável pela criação da primeira biblioteca dedicada à literatura infantil, em 1934, no Rio de Janeiro. Cecília Meireles, que aos 18 anos publicou Espectro (1919), o seu primeiro livro de poesia, é autora, entre vários títulos, de: Criança, meu amor (1923), Batuque, Samba e Macumba (1933), A Festa das Letras (1937), Viagem (1939), Olhinhos de Gato (1940), Problemas de Literatura Infantil (1950), Romanceiro da Inconfidência (1953), Solombra (1963), Poemas de Israel (1963), Ou Isto Ou Aquilo (1964). Mereceu os Prêmios: Poesia da Academia Brasileira de Letras, pelo livro Viagem (1938), Tradução de Obras Teatrais (1962); Jabuti de Tradução de Obra Literária pelo livro Poesia de Israel (1963); Jabuti de Poesia, pelo livro Solombra (1964); Machado de Assis (1965).
Para saber mais: Wikipédia: Cecília Meireles; PGL - José Paz Rodrigues: Cecília Meireles, A mais importante tagoreana do Brasil; Scielo - Maria Lúcia Dal Farra: Cecília Meireles: imagens femininas; EBC: Cecília Meireles; ABL: Fantasmas Clandestinos de Cecília Meireles; Filologia - André Luiz Caldas Amóra e Tatiana Alves Soares Caldas: Viagem: A Metapoesia em Cecília Meirelles; Roteiros & Descobrimentos: A escola, a criança e a literatura infantil; BDTD - Anderson Azevedo Ferigate: A presença de Gandhi na literatura de Cecília Meireles; SCRIPTA: Cecília Meireles – a educadora; Revista Decifrar - Karoline Alves Leite: Viagem e Solombra, de Cecília Meireles; Revista Decifrar – Karoline Alves Leite: O Noturno na Poesia de Cecília Meireles e de Ana Marques Gastão; Templo Cultural Delfos: Cecília Meireles: poeta e educadora.

Murilo Mendes (Juiz de Fora/MG: 13.05.1901 – Lisboa/Portugal: 13.08.1975): escritor de prosa e verso e expoente do movimento surrealista na literatura brasileira. Trabalhou nas mais diversas funções (telegrafista, prático de farmácia, guarda-livros, professor de francês, arquivista, escriturário, professor de Cultura Brasileira na Universidade de Roma) e publicou em inúmeros jornais e revistas. O seu primeiro livro, Poemas (1930), já nasceu premiado, ao receber o Prêmio Graça Aranha no mesmo ano em que foi lançado. Em 1972 o escritor foi contemplado com o Prêmio Internacional de Poesia Etna-Taormina. Murilo Mendes é autor de Bumba-meu-poeta (1931); História do Brasil (1932); Tempo e eternidade - com o poeta Jorge de Lima (1935); O sinal de Deus (1936); A poesia em pânico (1937); O visionário (1941); As metamorfoses (1944); Mundo enigma (1945); O discípulo de Emaús (1945); Poesia liberdade (1947); Janela do caos (1949); Contemplação de Ouro Preto (1954); Siciliana (1959) - em texto bilíngue e com prefácio de Giuseppe Ungaretti; Poesias - obra completa até a data e incluindo Sonetos brancos, com a exclusão de O sinal de Deus e História do Brasil(1959); Tempo espanhol (1959); Siete poemas inéditos (1961); Italianíssima (7 Murilogrammi) (1965); A Idade do serrote (1968); Convergência (1970); Poliedro (1972); Retratos-relâmpago (1973).
Para saber mais: Templo Cultural Delfos: Murilo Mendes - colecionador de tempos e metamorfoses; Templo Cultural Delfos: Murilo Mendes - entrevista; Adriana Cristina Martinez e Marcos Hidemi de Lima: Murilo Mendes, Poeta Surrealista; Remate de Males-UNICAMP: Murilo Mendes (diversos artigos); Inventário-UFBA - Priscila Wandalsen Mendonça de Castro: A Explosão do Olhar: A Paisagem Poética de Murilo Mendes; Filipe Amaral Rocha de Menezes: Animais biográficos: um estudo de Poliedro, de Murilo Mendes; Scielo - Valmir de Souza: Memória poética do espaço: Ouro Preto por Murilo Mendes; Robson Coelho Tinoco: Poética de uma conversão neorromântica: o erotismo religioso de Murilo Mendes; Repositório/FURG - Elizângela Rodrigues Teixeira: O poeta Murilo Mendes na revelação autobiográfica de a idade do serrote; Repositório/UNESP - Patrícia Aparecida Antonio e Antônio Donizeti Pires: O poético alinhave de Murilo Mendes: o poeta, a musa e a metapoesia em As Metamorfoses; Alexandra Vieira de Almeida: O acesso ao sagrado através do discurso trágico na poesia de Murilo Mendes; Letras e Letras/UFU - Tarsilla Couto de Brito: Estudo para o Caos Erótico de Murilo Mendes; Recorte/UninCor - Luciano Marcos Dias Cavalcanti: Orfeu dilacerado: mito e poesia em Murilo Mendes; Revlet/UFP - Luana Moura: O catolicismo às avessas em Murilo Mendes; Wikipédia: Murilo Mendes.

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