sábado, 5 de dezembro de 2009

Livro: A Luneta Mágica


A Luneta Mágica

O lado “B” da literatura “A” na Internet


Esta série de cinco artigos, que escrevi em 2001, foi publicada no Caderno G, da Gazeta do Povo, de Curitiba, no segundo semestre do mesmo ano.

Internet, como é que a gente conseguia viver sem ela!? À primeira vista (ou seria acesso?), é como a cidade de São Paulo, sabendo procurar, encontra-se de tudo, do arco da moça ao arco da velha. O melhor é que, ao contrário de São Paulo, na rede a maioria das coisas boas é grátis. Como, por exemplo, literatura brasileira e/ou estrangeira. Num país em que o livro é um bem de consumo distante de milhões de bolsos e que a leitura de lazer não é prioridade, nem na educação, o acesso, totalmente grátis, às mais diversas obras literárias, é um colírio. Para quem realmente gosta de literatura e, portanto, não se importa com seu formato digital (PDF, ebook), há um grande número de bibliotecas disponibilizando textos literários, em várias línguas, para pesquisa e leitura no próprio site e/ou para cópias. Ali estão: Machado de Assis, Eça de Queirós, Shakespeare, Gregório de Matos, Fernando Pessoa, Antônio Vieira, Euclides da Cunha.

O propósito desta série de artigos sobre a literatura na internet é falar sobre algumas obras interessantes, curiosas, divertidas e desconhecidas do grande público leitor, como: Micrômegas, a “ficção científica” filosófica de Voltaire, o iluminista autor de Zadig; As cartas apavorantes dos primeiros aventureiros portugueses no Brasil selvagem, como a de Antônio Rodrigues, escrita em 1553; Contos infantis do mundo todo.

Neste primeiro artigo a sugestão é acessar a página da Fundação Biblioteca Nacional e (re)descobrir Joaquim Manuel de Macedo (1820-1882) possivelmente na sua melhor obra: A Luneta Mágica. Este romance, pouco conhecido do grande público, é fascinante, divertido e perturbador. Publicado, entre 22 de março e 27 de setembro de 1868, como folhetim, no periódico A Semana Ilustrada, a sua trama, 133 anos depois, continua atual, uma vez que no Brasil a política ainda se arrasta, a moral engatinha e a ética ensaia os primeiros passos.

Diz-se que em terra de cego quem tem um olho é rei ou caolho. Nessa romanceada crônica de costumes, Macedo nos desvela que ter um olho em terra de cego é uma benção ou uma maldição. Na provinciana Rio de Janeiro do séc.19, o míope Simplício não mede esforços para curar a sua miopia física e moral: “Miopia física: - a duas polegadas de distância dos olhos não distingo um girassol de uma violeta. E por isso ando na cidade e não vejo as casas. Miopia moral:- sou sempre escravo das idéias dos outros; porque nunca pude ajustar duas idéias minhas. E por isso quando vou às galerias da câmara temporária ou do senado, sou consecutiva e decididamente do parecer de todos os oradores que falam pró e contra a matéria em discussão.” O seu desejo de ver as coisas do mundo é tanto que nem se importa com os meios. É nessa busca incessante que conhece um armênio mágico que cria, para ele, lunetas capazes de lhe dar a visão do real, durante três minutos, e depois disso, a visão do inesperado: a maldade e/ou a bondade que habita em todas as coisas, e/ou ainda o raro bom senso, da pessoa ou coisa observada. O que acaba colocando em polvorosa toda a sociedade do Rio antigo, que hora o hostiliza e o considera um louco e hora o ridiculariza e se aproveita de sua ignorância.

O armênio tem razão: a visão do mal é um tormento; ver muito é um erro; ver demais é um castigo; a temperança é virtude que deve presidir e moderar os gozos de todos os sentidos do homem.

A sina de Simplício no mundo seria trágica se não fosse cômica e ele o contrário de si mesmo, enredado em seus dilemas sobre o valor da cegueira e o peso da visão. A verdade é que ainda somos todos míopes diante da vida ou daquilo que não conhecemos ou compreendemos. Se 2001 (ano da publicação deste artigo) não é como imaginávamos em 1968, infelizmente continua o mesmo descrito em 1868, por Joaquim Manuel Macedo: corrupção, banditismo, oportunismo, falsidade, politicagem, fraude, ladroagem, impunidade, poder...

O nosso código é necessariamente muito sábio e muito previdente: exige que para ser jurado o cidadão brasileiro tenha apenas senso comum, se exigisse bom senso haveria desordem geral, porque segundo tenho ouvido dizer, muitos dos que têm feito e dos que fazem leis, muitos dos que as deviam mandar e mandam executar, e muitos dos que têm por dever aplicar as leis, não poderiam ser jurados por falta do bom senso! (...)
Dizem‑me isso, e asseguram‑me que o bom senso é senso raro.
Eu não entendo estas coisas; mas atendendo ao que me dizem, chego a crer que foi por essa razão que a lei não impôs a condição do bom senso nem para que o cidadão fosse jurado, nem para que fosse magistrado, deputado, senador, ministro, e conselheiro de estado.
Asseveram‑me ainda que se assim não fosse, que, se se exigisse a condição do bom senso para o exercício daquelas altas delegações e cargos do Estado, haveria quatro quintas partes do mundo oficial inteiramente fora da lei.”


Autor de romances leves como A Moreninha (1844) e O Moço Loiro (1845), talvez por isso, Joaquim Manuel de Macedo é considerado, por alguns críticos, um escritor pouco criativo. No entanto é preciso ressaltar que, se nessas primeiras obras encontramos um autor bastante jovem e romântico, aos 23/24 anos, o mesmo não se dá com A Luneta Mágica (1868) onde o escritor, beirando os 50 anos, está ciente do mundo ao seu redor e muito mais seguro do que a sua pena desenha sobre o papel. O Joaquim Macedo de A Luneta Mágica, permite-se ser irônico, sarcástico, dolorosamente divertido e, em sua reflexão dura e fria do mundo que o cerca, desfia um rosário de pérolas ainda hoje novas. Ou talvez apenas um pouco amareladas pelo ciclo vicioso da repetição.

Um advogado era para mim a luz do direito, o escudo da inocência, o campeão da lei; era a Sabedoria a pleitear pela justiça; como pois um advogado se anima a mentir diante de Deus e dos homens, a malfazer a sociedade, esforçando‑se com todo o poder das suas faculdades para que se julgue inocente e puro um assassino conhecido e provado, um malvado que ele sabe que é assassino?... e, mil vezes ainda pior, como é que outro advogado profundamente convencido de que o réu não cometeu o crime que lhe imputam, ousa ir acusá‑lo, ousa ir pedir que o encarcerem, que o condenem a trabalhos forçados?

A Luneta Mágica é um texto fácil e rápido, mas não é gratuito. É divertido, mas não é banal. Rimos da inocência de Simplício, ultrajada por familiares, mulheres, amigos e oportunistas de plantão, mas poderíamos chorar. A impressão que fica, ao fim da leitura, é a de que, com o passar do tempo, estamos a cada dia mais idiotizados nas relações humanas, políticas e sociais.

- Consola‑te, mano; tudo tem compensação: a tua miopia é uma desgraça; mas porque és míope não vês como são bonitos os bordados da farda de um ministro de estado, e portanto não te exasperas por não poder ostentá‑los.

Ainda bem que já foi decretado O Fim da História. Por quem, mesmo?

Nota: Em 1986, Wilson Rocha adaptou A Luneta Mágica para a série Teletema, da Rede Globo. O programa foi exibido de 26 a 30 de maio de 1986 e reprisado de 10 a 14 de janeiro de 1987 (Fonte: Memória Globo. Em 2009, a obra está sendo lançada no formato de História em Quadrinhos, com adaptação de Carlos Patati e arte de Marcio Castro, pela a Panda Books.

ilustração: arte de Joba Tridente sobre foto de Joaquim Manuel Macedo

2 comentários:

  1. este e um livro muito complexo mais e bom,como eu não obtive o direito de escolha pois sou estudante li ele todo mais se fosse e minha escolha,optará por outro!

    mais nadaa pessoal

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  2. Olá, Anônimo.
    Eu acho que toda e qualquer literatura deve, tão somente, ser proposta, com amplo leque de opções, e não imposta nas escolas.
    Os alunos deveriam ter liberdade de escolha e a possibilidade de trocar informações literárias com outros alunos sobre os livros que leram.
    Só assim é possível despertar o prazer da leitura e da descoberta de "mundos além" cotidiano.
    Espero que, um dia, releia A Luneta com um interesse maior, e que o mundo além dele, e o Brasil que estiver ao seu redor, seja outro (menos corrupto), muito melhor.

    Obrigado pela visita.
    Abração.
    T+
    Joba

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