Não sou muito ligado a datas. Para mim
todo dia é dia de todo dia e do que e de quem quiser o dia. Como havia prometido
publicar algo da Literatura Africana, achei apropriado aproveitar a Semana da Consciência Negra, para
começar. Assim, a cada dia (até 24 de novembro de 2012) postarei um conto, um
poema...
Os
Molwenes
Com a mão estendida e bem aberta, a cega
está sentada no chão de cimento e move sem descanso as pálpebras desprovidas de
pestanas, pondo a descoberto, deliberadamente, as cicatrizes vermelhas que
figuram no lugar dos olhos.
Um homem idoso para à frente dela, olha
para as horríveis orbitas e mete uma mão no bolso de onde extrai uma moeda de
prata.
A seguir, fica alguns instantes a
contemplá-la, indeciso, talvez pensando na alegria que com os seis bolos
comprados com aquela moeda, poderia proporcionar aos netos quando chegasse a
casa.
Uma voz interior segreda-lhe que deve dar
a moeda de prata porque é uma boa ação e lá no Céu, Deus-Todo-Poderoso, além de
aumentar os seus dias de vida, irá perdoar todos os pecados que cometeu, até
mesmo aqueles que já tinham esquecido; outra voz, entretanto, diz-lhe que o
melhor será comprar os bolos e fazer essa surpresa aos netos, que por essas e
por outras, cada vez o adorarão mais.
Por fim, evitando olhar para os olhos da
cega, estende a mão e entrega-lhe uma moeda que ela, sofregamente, se apressa a
guardar na capulana rota e suja, com uma rapidez inesperada numa invisual.
Fascinado, o homem de idade permanece de
mão estendida e agora vazia, comovendo-se quando a ouve balbuciar um doce
"Obrigado", ecoando como o som cristalino da água a deslizar num
regato celestial.
Quando o homem se refaz do encantamento,
já a cega estende de novo a mão e diz um novo - "Bom dia",
continuando sempre a bater com as pálpebras sem pestanejar.
O homem idoso recomeça a caminhar,
pressentindo uma lágrima de emoção a querer soltar-se dos olhos e a voz de
Deus-Todo-Poderoso a confirmar que os seus pecados já tinham sido absolvidos e
prometendo, se ele continuasse a ser assim bonzinho, enviar mais cedo ou mais
tarde, uma pomba direita ao seu coração.
...
- Avô - consegui interromper eu,
finalmente - Porque é que Deus é sempre branco e Satanás, sempre negro? É assim
que o padreca ensina...
O avô mostrou-se pela primeira vez
perturbado e limitou-se talvez por isso, a olhar alternadamente para a pele
negra que cobria os nossos rostos e mãos. Depois, levantando-se ruidosamente, apenas
disse:
Já vai alta a noite. Vamos dormir, meu
filho...
*
Isaac Mario Manuel Zita (1961
- 1983) nasceu em Maputo, Moçambique. Lecionou por 2 anos e frequentava o curso
de Professores de Português, para as 7ª, 8ª e 9ª classe, quando morreu, com
apenas 22 anos. Sua obra mais conhecida é Os
Molwenes. No site Memória da África constam, também: A Decisão; A visita; Diário de um professor estagiário; Gurué maravilhoso planalto : crónica de uma
viagem; O fugitivo.
Ilustração de Joba Tridente
Genio seria o adjectivo correcto para classificar o Isaac Zita. Com 22 anos escreveu muitas obras literarias.
ResponderExcluir..., é Unknown, com que palavras nos brindaria na blindagem literária de hoje. ..., grande abraço e grato por suas visitas.
ExcluirBoa tarde alguém tem a obra de isaac zita os molwenes em pdf?
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