sexta-feira, 7 de março de 2014

Júlia Lopes de Almeida: A Arte de Envelhecer

Fosse o Robin, do divertido seriado pop Batman, ele diria: Santa coincidência, Joba! Será? É que estava pesquisando sobre a escritora e cronista Júlia da Costa (1844-1911), para postagem nesta  Semana da Mulher, confundi com a notória professora paranaense Júlia Wanderley (1874-1918), e, por erro de digitação, encontrei a escritora carioca Júlia Lopes de Almeida, que morreu há oitenta anos, mais precisamente em 30/05/1934. Fuxicando pela rede, o primeiro material da escritora que encontrei foi a edição de crônicas Livro das Donas e Donzellas (Francisco Alves & Cia, 1906), no site Biblioteca Virtual de Literatura, que disponibiliza obras de Domínio Público. Entre as curiosas crônicas de um ontem de contradições (?) estão estas três: O Vestuário Feminino, A Arte de Envelhecer e a atualíssima A Mulher Brasileira. Ia postar somente a última, sobre a mítica mulher brasileira que, ainda hoje, é conhecida (no Brasil) e no mundo como desfrutável. Mas, ao ler as duas outras, achei que a liga das três provoca um curto ou longo circuito na contemporaneidade. Confira a segunda postagem:


A Arte de Envelhecer
Júlia Lopes de Almeida

Não somos só nós, minhas amigas, que vemos com terror brilhar por entre as nossas madeixas castanhas, louras ou pretas, o primeiro fio de cabelo branco. As dolorosas apreensões desse momento eram-nos só atribuídas a nós, como se não nascêramos senão para a mocidade e o amor.

O homem envergonhado, e com receio de se confessar vaidoso, sem perceber talvez que a primeira denúncia da velhice tem para nós amarguras mais sutis que a do simples medo de ficarmos mais feias, teve sempre para a nossa decepção um sorriso de inclemente ironia...
Poetas e contistas, valham-nos eles, e que Deus lhes prolongue a raça! engrinaldaram de rimas e períodos suaves a dor desse momento sagrado, em que as nossas esperanças fecham as asas, repentinamente murchas, e a luz dos nossos sonhos esmorece...

Mas se eles adivinharam a delicadeza do nosso sentimento, não nos contaram a espécie do seu, ao ver a luz pálida e fina de um fio prateado coleando por entre as ondas negras da cabeleira, ou as pontas castanhas do bigode.

Pensávamos que os primeiros sinais outoniços, que são para as mulheres os mais terríveis, não os alarmassem a eles, sempre embebidos em tão grandes ideais, que nem tivessem vagar para perceber a ruína do próprio corpo. Enganamo-nos; o homem é também sensível como nós às apreensões que a vista primeiro cabelo branco sugere.

Um fio de cabelo, nada há mais frágil, nem mais quebradiço nem mais leve, e entretanto vê-se que mundo de sensações ele prende e arrasta! Até aqui, eram só as nossas, supúnhamos, mas agora sabemos que são as de toda a gente!

Tenho diante dos olhos uma página de homem - A arte de envelhecer - que se me afigura ter sido escrita diante de um espelho pérfido. Essa página suave e bem feita analisa essa hora delicada e de difícil interpretação, em que há em todos o mesmo estremecimento de susto, e o mesmo estender de mãos para agarrar o que passou e que não voltará jamais - a mocidade.

A mocidade! aos quarenta anos ainda a sentimos perto, aspiramo-lhes o aroma, como que lhe sentimos o hálito quente; já ela nos deixou, já ela se foi embora, e todavia recrudesce em nós, mulheres, toda a alacridade vivaz da sua exuberância; há mais calor no nosso peito, mais ardor na nossa paixão, mais firmeza na nossa vontade. É nesse instante de supremo gáudio que um insignificante fio de cabelo branco nos vem lembrar que o bem que gozamos, tão conscientemente como o gozáramos até então com indiferença... há de acabar!

Supus, não sei porque, à força de ouvir dizer, talvez, que essa hora para os homens chegasse mais tarde. Vejo que não. Sempre é consolador ter bons companheiros na desgraça...

No arte de envelhecer, tema delicioso e que o autor poderia desenvolver em um volume grosso, há uma pincelada jeitosa e leve na referência à maneira por que sabemos disfarçar os estragos impiedosos do tempo... O que as palavras não dizem, mas a insinuação aponta, é que esse meio é o maquilage, o artifício, o auxílio das cores sabiamente combinadas, a discrição dos véus e o efeito artístico do penteado...

Saber compor a fisionomia, dar-lhe aparência agradável, torná-la bonita quanto possível, é a mais comum das preocupações femininas, para que não a confessemos.

Todavia, há uma revelação a fazer: é que raramente se põe aqui ao serviço desse cuidado o uso das tintas, das pomadas e dos vernizes.

A não ser a inglesa, protegida por um clima que lhe aveluda a tez, não conheço mulher que menos recorra aos embustes do toucador que a brasileira.

O pó de arroz, contra o qual antigamente alguns pais de família se insurgiam, é o único auxílio de que lançamos mão, mais ainda como um complemento de toilette, que o uso torna indispensável, que mesmo como um elemento de garridice.

O pó de arroz não só atenua o luzidio da pele, afogueada por uma temperatura quase sempre alta, como também suaviza, refresca e aromatiza.

Positivamente, ele foi adotado por isto: não só embeleza como sabe bem.

De tal maneira isto é certo, que ninguém o oculta, como a um fator misterioso de formosura, que se quisesse guardar incógnito; ao contrário, damo-lhes caixas vistosas de cristal lapidado onde a luz incide em refrações irisadas.

A velhice material, grosseira, ainda não mereceu da maior e melhor parte das mulheres brasileiras o sacrifício inútil da máscara confeccionada em sessões longas, com pincelinhos, camurças, óleos, tintas e esmaltes.

Mas A arte de envelhecer não teve por objetivo a arte de não parecer velho; mas sim de padecer com resignada calma as gradações da mudança. Isso depende, além da vontade, das circunstâncias de cada um...

A felicidade está em envelhecer sem arte, com outras preocupações mais elevadas e menos egoístas...

Desde os primeiros anos de escola que os mestres se esforçam por fazer compreender às crianças que a beleza, sendo transitória, menos vale do que a bondade, e que

On ne saít plus que devenir
Lorsque l'on n'a su qu'être belle

O esforço para a perfeição material é sempre improfícuo, e o para o aperfeiçoamento moral sempre bem coroado.

A arte de envelhecer é a de exercitar a alma nas doces práticas do benefício e saber derramar em torno a si até à última hora de consciência, a sombra que alivia ou o calor que reanima...

*
Foto-Ilustração de Joba Tridente - 2014


Júlia Lopes de Almeida (Rio de Janeiro: 1862 - 1934), foi escritora, cronista, teatróloga. Seus primeiros artigos foram publicados aos 19 anos na A Gazeta de Campinas e, depois, em O País, Jornal do CommercioA SemanaIlustração Brasileira, Tribuna Liberal. Foi casada com o escritor português Felinto de Almeida. Seus filhos Afonso Lopes de Almeida, Albano Lopes de Almeida e Margarida Lopes de Almeida também seguiram a carreira literária. Aos 24 anos lançou em Portugal o seu primeiro livro: Traços e Iluminuras. Entre os mais de 40 livros de contos, romances, teatro, crônicas, estão: Romance: Memórias de Marta (1889); A Família Medeiros (1892); A Viúva Simões (1897); A Falência (1901); A Intrusa (1908); Cruel Amor (1911); Correio da Roça (1913); A Silveirinha (1914); A Casa Verde - com Filinto de Almeida (1932); Pássaro Tonto - póstumo (1934); Conto: Traços e Iluminuras (1887); Ânsia Eterna (1903); Era uma Vez (1917); A Isca (1922); Teatro: A Herança (1909); Quem Não Perdoa; Doidos de Amor; Nos Jardins de Saul (1917); Crônica: Livro das Donas e Donzelas – 1906; Jornadas no Meu País (1920); Infantil e juvenil: Contos Infantis - com Adelina da Silveira Lopes (1886); Histórias da Nossa Terra (1907); A Árvore - com Afonso Lopes de Almeida(1916); Ensaio: Livro das Noivas (1896); Eles e Elas  (1910); Jardim Florido (1922); Maternidade (1925). Fontes Biográficas: Wikipédia; Enciclopédia Itaú Cultural - Literatura Brasileira e Biblioteca Virtual de Literatura.

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