Há
15 anos publiquei este artigo na Gazeta do Povo, em Curitiba-PR. Naquele tempo (que
eu me lembre) as escolas não eram obrigadas a aprovar alunos para cumprir a
cota de formação escolar. Naquele tempo (que eu me lembre) não havia livros
censurados por conta de um texto adulto distribuído para criança ou por conta
de um texto antigo soar preconceituoso no esquema do politicamente correto de
hoje... Naquele tempo já havia alunos sem escola, professores miseráveis (com
seus salários de fome), estudantes sem merenda, violência escolar... 2014 vai
que vai. O que mudou? O que melhorou? Diga você!
Em
2011 postei este texto no Falas ao Acaso.
Estou republicando por causa do bonito filme A Menina Que Roubava Livros. Na verdade, a causa é os comentários
tolos ao filme, que tenho lido na rede, postados por “leitores” (e não
leitores) do livro.
Quanto Vale a Cultura?
Joba
Tridente
Dia desses um homem
comum, quase do povo, virou notícia nacional. Não mordeu um cachorro ou cometeu
algum horrendo crime humano. Estava apenas preocupado com a sua triste sorte de
interior. Amante dos livros e a caminho de inteirar a idade, chegou a uma óbvia
conclusão. Frente à sua biblioteca particular, era como se estivesse frente a
um espelho. Ele e os livros envelheciam. Ele, dentro do ciclo vital humano que,
para uns é curto demais e para outros é terrivelmente infinito. Os livros, nas
estantes, alguns já meio gagás e mudos há muito.
Assim como
alguns brasileiros, o homem comum, quase do povo, venceu as etapas escolares e se
formou em sociologia. A
caminho da sua formação foi guardando os livros auxiliares e outros que lhe
interessavam. Construiu um pequeno e doméstico patrimônio cultural, mas não
financeiro. Enquanto vivo, com uma profissão reconhecida, até presidencialmente,
poderia manter o seu corpo, depósito da sua cultura, em plena atividade, mas, e
depois? Quando a alma, com a cultura adquirida, o deixasse, o que seria feito
dele? Seria enterrado como indigente? Serviria de corpo-cobaia para
experimentos e treinos em algum hospital-escola? Que destino teria aquele que
lhe servira a tantos ir e vir? Triste sina a sua, e a de milhões de
brasileiros: não ter onde cair morto! Sim, porque não juntou em bens de valor o
suficiente para comprar uma vala, sete palmos, um túmulo, uma tumba qualquer em
um cemitério qualquer, para ser enterrado o seu corpo pós-vida. E os livros,
seu bem maior, sucumbiriam ao pó e as traças? Aí estava um curioso impasse a
ser resolvido.
Poderia,
evidentemente, enquanto é tempo, vender o seu pequeno acervo a um sebo e até
acompanhar destino final dele. Mas a questão continuava, teria dinheiro suficiente
para comprar um túmulo? Nos dias de hoje é um mercado concorrido este. Aliás os
dois mercados são concorridos, o dos sebos, com venda de livros, discos e tudo
o mais que for vendável e o dos cemitérios, com mais gente nascendo e morrendo
a cada dia. Talvez, com a Lei de Doação de Órgãos, em alguns casos, pode-se até
ter nada para enterrar e ainda há a opção do crematório, para poucos e
privilegiados. Mas ainda será pouco.
Assim, na dúvida do
preço alcançado pelos seus livros, o homem comum, quase do povo, resolveu fazer
um trato, uma permuta com o prefeito de sua cidade, doaria o seu acervo para a
Biblioteca Pública, administrada pela prefeitura, em troca de um túmulo com
lápide, onde pudesse deixar um epitáfio. O que foi aceito e virou notícia.
Solução original, trocar a o seu acervo por uma sepultura com lápide. Assim o
seus livros vão para uma biblioteca pública e o seu corpo para um túmulo com
lápide e tudo.
O que me inquieta na verdade, já que depois de
morto, tanto faz enterrar, queimar, cortar, jogar no lixo ou, algum
responsável, usar como bem entender o meu corpo..., o que me incomoda, é o
preço da cultura. O preço do conhecimento, da formação profissional de um
indivíduo. Será que a cultura não vale mais que um reles túmulo com lápide?
Será que ela só terá algum valor como um bem qualquer, depois da morte, como é
comum, para pagar um enterro?
Somos quase todos
mendigos do saber, implorando algum trocado para chegar até a próxima página.
Mas as vírgulas são muitas e os pontos finais estão sempre interrompendo o
livre trânsito do pensamento. Somos Gulliver e Malazartes. Macunaína e Quixote.
Policarpos eternamente, em troco da boa morte. Não importa se Ubirajaras, Zés,
Pedros ou Manés, a verdade é que estamos a todo momento com o travessão na
garganta, as reticências na boca e o carvão gasto nas mãos. Implorando,
primeiro, um lugar na vida. Depois...
Para uns o melhor
amigo de um homem é o cão. Para outros o gato, o peixe, a cobra, a aranha, a
galinha, a vaca... Para a minoria, o livro. Isso mesmo, o livro, este ser alienígena que apavora a tantos e
tem sobrevivido a todos. Assim, será que alguma prefeitura aceitaria um
bichinho qualquer, em troca de um túmulo com lápide ou mesmo uma cova rasa sem
ao menos uma identificação? Nem o zoológico, com essa crise econômica braba que
não perdoa sequer os leitores mais assíduos. No entanto, ainda há quem queira
receber e cuidar de um livro, em troca de um agrado qualquer. É que, no Brasil,
não é tão fácil, quanto parece, comprar e manter a companhia de um livro, mesmo
que se queira. Não que seja ilegal, muito pelo contrário, há até quem o
incentive, o problema está no preço nada convidativo. É claro, e também na
falta de tradição à leitura (ou seria na alfabetização?).
Conheço muita gente que não entende como é que
alguém pode “gostar de ler”,
principalmente livros, quando pode “ouvir
rádio e ver televisão”. Semana passada, comentando com um amigo sobre um
livro que me interessava, como livre pensador, num mundo repleto de tradições
contra ou a favor do homem pensante, ele tranquilamente confessou: “Não gosto de ler livros, é pura perda de
tempo. Gosto é de ver a história de um livro de sucesso transformado em filme e
passar dublado na televisão. Não gosto de ver filme no cinema porque a gente
tem que ler as legendas. O filme é legal porque a gente consegue viajar na
história. No livro não. Acho que um escritor, em vez de escrever, devia gravar
a sua história em fita ou CD, pra gente ficar deitado e ouvindo, sem precisar
ficar prestando muita atenção ou segurando o livro e virando as páginas.”
Como será que alguém consegue imaginar em cima do que já está (re)imaginado e
pronto num filme? Não sei. Ele não é o único, o primeiro ou o último, mas o seu
discurso faz eco ao que se ouve, daqueles que temem a palavra. Daqueles que
temem o tom das palavras naqueles que
têm o dom da imaginação.
Daí que pergunto,
quanto vale a cultura? Cada livro comprado e bem cuidado pode funcionar como
uma poupança cemiterial? Se isso
virar moda, pelo tamanho do túmulo será possível saber o tamanho da biblioteca
ou o grau cultural do morto? Ditaremos um novo (?) ditado: “Diga-me o tamanho da tua biblioteca e eu te direi o túmulo que terás!”
E se um sujeito, digamos, um pré-morto, conseguir apenas um túmulo simples,
de uma prefeitura pobre, poderá pleitear junto às autoridades competentes a
realização de um chá-de-túmulo, para
arrecadar fundos (e livros?) e providenciar melhorias na sepultura e assim, no
pós-morte se rodear de todo conforto? Quem viver, verá! (ou será: quem ler,
sepultar-se-á?).
*
Joba Tridente: Artigo
(20.04.1998) e Foto (07.01.2014)
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