domingo, 2 de março de 2014

Joba Tridente: Quanto Vale a Cultura?

Há 15 anos publiquei este artigo na Gazeta do Povo, em Curitiba-PR. Naquele tempo (que eu me lembre) as escolas não eram obrigadas a aprovar alunos para cumprir a cota de formação escolar. Naquele tempo (que eu me lembre) não havia livros censurados por conta de um texto adulto distribuído para criança ou por conta de um texto antigo soar preconceituoso no esquema do politicamente correto de hoje... Naquele tempo já havia alunos sem escola, professores miseráveis (com seus salários de fome), estudantes sem merenda, violência escolar... 2014 vai que vai. O que mudou? O que melhorou? Diga você!

Em 2011 postei este texto no Falas ao Acaso. Estou republicando por causa do bonito filme A Menina Que Roubava Livros. Na verdade, a causa é os comentários tolos ao filme, que tenho lido na rede, postados por “leitores” (e não leitores) do livro.


Quanto Vale a Cultura?
Joba Tridente

Dia desses um homem comum, quase do povo, virou notícia nacional. Não mordeu um cachorro ou cometeu algum horrendo crime humano. Estava apenas preocupado com a sua triste sorte de interior. Amante dos livros e a caminho de inteirar a idade, chegou a uma óbvia conclusão. Frente à sua biblioteca particular, era como se estivesse frente a um espelho. Ele e os livros envelheciam. Ele, dentro do ciclo vital humano que, para uns é curto demais e para outros é terrivelmente infinito. Os livros, nas estantes, alguns já meio gagás e mudos há muito.

Assim como alguns brasileiros, o homem comum, quase do povo, venceu as etapas escolares e se formou em sociologia. A caminho da sua formação foi guardando os livros auxiliares e outros que lhe interessavam. Construiu um pequeno e doméstico patrimônio cultural, mas não financeiro. Enquanto vivo, com uma profissão reconhecida, até presidencialmente, poderia manter o seu corpo, depósito da sua cultura, em plena atividade, mas, e depois? Quando a alma, com a cultura adquirida, o deixasse, o que seria feito dele? Seria enterrado como indigente? Serviria de corpo-cobaia para experimentos e treinos em algum hospital-escola? Que destino teria aquele que lhe servira a tantos ir e vir? Triste sina a sua, e a de milhões de brasileiros: não ter onde cair morto! Sim, porque não juntou em bens de valor o suficiente para comprar uma vala, sete palmos, um túmulo, uma tumba qualquer em um cemitério qualquer, para ser enterrado o seu corpo pós-vida. E os livros, seu bem maior, sucumbiriam ao pó e as traças? Aí estava um curioso impasse a ser resolvido.

Poderia, evidentemente, enquanto é tempo, vender o seu pequeno acervo a um sebo e até acompanhar destino final dele. Mas a questão continuava, teria dinheiro suficiente para comprar um túmulo? Nos dias de hoje é um mercado concorrido este. Aliás os dois mercados são concorridos, o dos sebos, com venda de livros, discos e tudo o mais que for vendável e o dos cemitérios, com mais gente nascendo e morrendo a cada dia. Talvez, com a Lei de Doação de Órgãos, em alguns casos, pode-se até ter nada para enterrar e ainda há a opção do crematório, para poucos e privilegiados. Mas ainda será pouco.

Assim, na dúvida do preço alcançado pelos seus livros, o homem comum, quase do povo, resolveu fazer um trato, uma permuta com o prefeito de sua cidade, doaria o seu acervo para a Biblioteca Pública, administrada pela prefeitura, em troca de um túmulo com lápide, onde pudesse deixar um epitáfio. O que foi aceito e virou notícia. Solução original, trocar a o seu acervo por uma sepultura com lápide. Assim o seus livros vão para uma biblioteca pública e o seu corpo para um túmulo com lápide e tudo.

O que me inquieta na verdade, já que depois de morto, tanto faz enterrar, queimar, cortar, jogar no lixo ou, algum responsável, usar como bem entender o meu corpo..., o que me incomoda, é o preço da cultura. O preço do conhecimento, da formação profissional de um indivíduo. Será que a cultura não vale mais que um reles túmulo com lápide? Será que ela só terá algum valor como um bem qualquer, depois da morte, como é comum, para pagar um enterro?

Somos quase todos mendigos do saber, implorando algum trocado para chegar até a próxima página. Mas as vírgulas são muitas e os pontos finais estão sempre interrompendo o livre trânsito do pensamento. Somos Gulliver e Malazartes. Macunaína e Quixote. Policarpos eternamente, em troco da boa morte. Não importa se Ubirajaras, Zés, Pedros ou Manés, a verdade é que estamos a todo momento com o travessão na garganta, as reticências na boca e o carvão gasto nas mãos. Implorando, primeiro, um lugar na vida. Depois...

Para uns o melhor amigo de um homem é o cão. Para outros o gato, o peixe, a cobra, a aranha, a galinha, a vaca... Para a minoria, o livro. Isso mesmo, o livro, este ser alienígena que apavora a tantos e tem sobrevivido a todos. Assim, será que alguma prefeitura aceitaria um bichinho qualquer, em troca de um túmulo com lápide ou mesmo uma cova rasa sem ao menos uma identificação? Nem o zoológico, com essa crise econômica braba que não perdoa sequer os leitores mais assíduos. No entanto, ainda há quem queira receber e cuidar de um livro, em troca de um agrado qualquer. É que, no Brasil, não é tão fácil, quanto parece, comprar e manter a companhia de um livro, mesmo que se queira. Não que seja ilegal, muito pelo contrário, há até quem o incentive, o problema está no preço nada convidativo. É claro, e também na falta de tradição à leitura (ou seria na alfabetização?).

Conheço muita gente que não entende como é que alguém pode “gostar de ler”, principalmente livros, quando pode “ouvir rádio e ver televisão”. Semana passada, comentando com um amigo sobre um livro que me interessava, como livre pensador, num mundo repleto de tradições contra ou a favor do homem pensante, ele tranquilamente confessou: “Não gosto de ler livros, é pura perda de tempo. Gosto é de ver a história de um livro de sucesso transformado em filme e passar dublado na televisão. Não gosto de ver filme no cinema porque a gente tem que ler as legendas. O filme é legal porque a gente consegue viajar na história. No livro não. Acho que um escritor, em vez de escrever, devia gravar a sua história em fita ou CD, pra gente ficar deitado e ouvindo, sem precisar ficar prestando muita atenção ou segurando o livro e virando as páginas.” Como será que alguém consegue imaginar em cima do que já está (re)imaginado e pronto num filme? Não sei. Ele não é o único, o primeiro ou o último, mas o seu discurso faz eco ao que se ouve, daqueles que temem a palavra. Daqueles que temem o tom das palavras naqueles que têm o dom da imaginação. 

Daí que pergunto, quanto vale a cultura? Cada livro comprado e bem cuidado pode funcionar como uma poupança cemiterial? Se isso virar moda, pelo tamanho do túmulo será possível saber o tamanho da biblioteca ou o grau cultural do morto? Ditaremos um novo (?) ditado: “Diga-me o tamanho da tua biblioteca e eu te direi o túmulo que terás!” E se um sujeito, digamos, um pré-morto, conseguir apenas um túmulo simples, de uma prefeitura pobre, poderá pleitear junto às autoridades competentes a realização de um chá-de-túmulo, para arrecadar fundos (e livros?) e providenciar melhorias na sepultura e assim, no pós-morte se rodear de todo conforto? Quem viver, verá! (ou será: quem ler, sepultar-se-á?).

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Joba Tridente: Artigo (20.04.1998) e Foto (07.01.2014)


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