Na
postagem anterior a vez era das parlendas. Hoje é de um belíssimo conto
bucólico dos Irmãos Grimm. A sua
narrativa, assim meio lengalenga, acho que tem um pouco a ver com as parlendas.
João no auge da alegria está publicado em Pérolas
e Diamantes - Irmãos Grimm, Livraria Moderna, 1908, série Bibliotheca das Creanças - Contos Infantis
e foi traduzido por Henrique Marques
Junior.
Neste
dia um de maio, acho que ele serve de profunda reflexão sobre o trabalho e o
valor das pequenas grandes coisas da vida. Puro nonsense!
João no
auge da alegria
Era uma vez um rapaz que dava pelo nome de João e que esteve
a servir durante sete anos num lugarejo de província. Ao cabo desse tempo,
despediu-se do patrão e disse-lhe:
- Patrão, terminou o meu tempo de serviço para que fora
chamado, mas, desejando regressar para casa de minha mãe, precisava que me
pagasse o meu salário.
- Como foste sempre fiel e honesto - respondeu o patrão - mereces
boa paga; e, pronunciando estas palavras, deu-lhe uma barra quase tão grande
como a cabeça do seu antigo criado.
João tirou o lenço da algibeira, embrulhou nele a barra, pôs
aos ombros e meteu pernas a caminho, em direitura a casa da mãe. Andando
sempre, ainda que custando-lhe a andar, por causa do peso do fardo, viu passar
a seu lado um viandante trotando satisfeito num bonito e fogoso corcel.
- Que bom há de ser andar a cavalo! - exclamou João em tom
alto. - Aquele homem vai ali comodamente sentado, não dá topadas nas pedras,
não estraga as botas e anda sem que dê por isso.
- Mas olha lá, ô rapaz - respondeu o viandante que lhe ouvia
a exclamativa - porque é que vais a pé?
- Porque assim me é necessário - tornou João - Levo uma
trouxa muito pesada, que tem de ir para casa; é ouro, é certo, mas pesa-me como
chumbo e quase me custa levantar o pescoço!
- Queres tu entrar numa combinação comigo? - aventurou o
cavaleiro, que fizera estacar o animal - Façamos uma troca: cedo-te o meu
bonito cavalo, dando-me tu a barra de ouro!
- Com o máximo prazer! Advirto-o, porém, de que o carrego é
pesado!
O viandante depressa se desmontou do ginete, ajudou João a
montar-se e em seguida tomou a barra, dizendo ao ingênuo moço, enquanto lhe
dava as guias:
- Assim que desejes andar tão veloz como o vento, basta
dares um estalido com a língua e gritares: upa, upa!
João ficou louco de contente, apenas se viu escarranchado no
cavalo, e partiu a rápido galope. Ao fim de certo tempo, lembrou-se de ir mais
depressa ainda, e, dando um estalido com a língua, incitou: upa upa! O animal,
compreendendo a indicação, largou numa corrida desenfreada, dando grandes upas
e tais foram eles que o alegre João, não podendo suster-se no dorso do animal,
caiu estatelado no meio da estrada, quase à beira de um poço. O cavalo continuou
a correr, mas um aldeão que vinha em sentido inverso, trazendo uma vaca,
agarrou-o pela rédea e assim o levou para junto de João que, levantando-se,
estava a ver se havia sofrido algum desastre com o trambolhão.
- Olha que asneira, montar a cavalo! Arrisca-se a gente a
deparar um animal como este que nos atira de pernas ao ar! Nunca mais caio
noutra. Agradeço o seu favor, mas não me fale no cavalo; se fosse uma vaquinha,
isso então era outro cantar; basta levá-la diante de si, com certo jeitinho; e
não é só isso: dá também o leite com que se faz a manteiga e o queijo que nos
sustenta. Que não faria eu para assim possuir um animal!
- Se faz nisso muito empenho - alvitrou o aldeão - eu não
ponho dúvida em trocá-la pelo seu cavalo.
João açambarcou logo a ideia, cheio de satisfação; o aldeão
montou o animal e depressa se eclipsou.
João tocou a vaca, que ia à sua frente muito devagar, enquanto
ia magicando nas vantagens da troca que acabara de fazer:
- Desde o momento em que me não falte uma fatia de pão, e
com certeza não será isso o que me ha de faltar, posso, quando a fome me
aperte, comer manteiga ou queijo, se tiver securas, munjo a vaca, e bebo um
excelente leite. Que mais podes ambicionar, ó Janeco?
Ao acercar-se de um albergue, parou e querendo possuir
alimento para sempre, deu cabo de toda a comida e gastou os derradeiros escudos
numa cerveja. De seguida, tornou a pôr-se a caminho da casa precedido pela
pachorrenta vaca.
O sol estava a pino e escaldava o rapaz e João,
encontrando-se num sitio desarborizado, sentiu tanta sede que se lembrou de
beber leite; para esse fim, amarrou a vaca a uma sebe e, descarapuçando-se,
começou a mungir o animalejo, mas por mais esforços que empregasse não
conseguiu uma gotinha de leite. Como era leigo no assunto, magoou a vaca que,
com a dor, lhe deu um coice que o atirou longe e, com a dor, ele desmaiou.
Por felicidade, acercou-se um homem que levava, num carrinho
de mão, um porco ainda pequeno.
- Que diabo foi isso? - perguntou o homenzinho, ajudando-o a
pôr-se em pé.
João narrou o sucedido; o homem do porco ofereceu-lhe a
borracha, dizendo-lhe:
- Ande, beba um gole para o pôr firme! E quer saber? A vaca
está velha; boa apenas para puxar a uma carroça ou então para ir para o
matadouro. Por esse motivo não é para admirar que lhe não conseguisse tirar
leite.
- Oh com a breca! - exclamou João, arranjando o cabelo que
se havia emaranhado com a queda - Quem o diria! O que é verdade é que,
matando-se, a vaca ainda alimenta muita gente, mas como acho a carne pouco
saborosa, não me servia. Agora se fosse um porquito! Isso era ouro sobre azul!
Eu então que sou doido por chispe com feijão branco e chouriço de sangue!
- Ah, sim?! - lembrou o homem - Então tome lá o porco em troca
da vaca!
- Deus o ajude! - aceitou João dando a vaca; puxou o porco
pela corda que o segurava no carrinho.
À medida que ia andando, ia pensando, que tudo lhe corria em
maré de rosas; mal tinha uma contrariedade e logo lhe desapareceu. Nisto dá de
rosto com um rapazinho que levava debaixo do braço um gordo pato. Deram-se os
bons dias e começaram de conversa. João narrou os seus feitos, gabando-se da
sua ventura; em compensação, o rapazito disse que o pato era uma encomenda para
um batizado que tinha lugar na próxima localidade.
- Tome-lhe o peso - aconselhou o rapaz, agarrando o pato
pelas asas - Pesa bem, não é assim?! Não é caso para espantos, pois ha mais de
dois meses que foi para a engorda. Quem o cozinhar pode gabar-se de apanhar uma
excelente enxundia!
- E é verdade que sim! - apoiou o nosso João - Está gordo
que é uma beleza! Contudo, o meu porquinho também não está mau!
O rapazito calou-se, mas não fazia outra coisa senão olhar
para um lado e para o outro inquieto; em seguida, meneando a cabeça, disse:
- Quer saber uma cousa? Roubaram não há muitas horas um
porco a uma das autoridades da terra por onde eu agora fiz caminho. Está-me cá
a parecer que é esse mesmo, sim, quase que ia jurar! Que mau bocado lhe fariam
passar se o vissem com ele. O menos que lhe faziam era metê-lo n'uma enxovia
muito escura!
João, muito assustado, exclamou:
- O meu amigo é que me pode valer nestes apuros! Desde que
conhece os cantos á vila, nada mais fácil que ocultá-lo; dê-me o pato que lhe
cedo por troca o porco.
- Corro grave risco com a transação - hesitou o moço - mas
para o livrar das mãos da justiça, aceito-a!
Agarrou a corda e, puxando pelo porco, depressa se esgueirou
por um atalho. O nosso herói, descuidado e alegre, continuou a andar,
raciocinando:
- Fazendo bem as contas, eu ainda ganho com a troca: a carne
do pato é muito saborosa e com as penas faço uma almofada.
Depois de haver transposto a derradeira localidade antes de
chegar á sua aldeia natal, notou um amolador parado com a sua roda que fazia
girar cantando.
João estacou e ficou a olhar para o que o homem estava
fazendo; em seguida, dirigiu-lhe a palavra.
- Pela sua alegria se vê que tudo lhe corre no melhor dos
mundos possíveis!
- Certamente, todo o ofício é ouro em fio, um bom amolador
anda sempre endinheirado. Onde comprou esse belo pato?
- Comprar não comprei... foi uma troca que fiz! troquei-o
por um porco.
- E o porco?
- Foi em troca de uma vaca!
- E a vaca?
- Trocada por um cavalo!
- E o cavalo?
- Por uma bola de ouro do tamanho da minha cabeça!
- E esse ouro?
- Foi a paga que recebi de sete anos de serviço!
- Sim, senhor! - exclamou o amolador - Não se perde! Se não
mudar de tática ainda há de juntar muito dinheiro.
- Parece que sim! - retorquiu João - Que hei de agora fazer
para o conseguir?
- Faça-se amolador. É-lhe necessária apenas uma pedra de
amolar... o resto depois vem com o andar dos tempos. Tenho aqui uma; já está um
pouco gasta, mas para lhe vender não, troco-a pelo pato. Convém-lhe?
- Se convém! - aceitou logo João - Se suceder, como diz, que
nunca me há de faltar dinheiro, serei um rei pequeno, sem cuidados, sem
ralações e sem trabalho!
Entregou em seguida o pato ao amolador, que lhe deu uma
pedra de amolar e uma outra que apanhara do chão.
- Olhe - disse para o herói do conto - aqui tem mais uma;
esta é magnifica para fabricar uma bigorna e endireitar pregos. Tome sentido
nela.
João tomou as duas pedras e lá se foi muito contente, com os
olhos brilhando de alegria.
- Nasci dentro de algum fole com certeza; pensou de si para
si - tenho sorte em tudo!
Entretanto como já andava desde manhã sentiu-se fatigado;
estava com fome, mas nada tinha com que a matar, por ter comido todo o farnel
quando da troca da vaca. Custou-lhe a andar e volta e meia tinha que parar para
descansar; as pedras faziam-lhe muito peso e disse com os seus botões que era
bem bom que não as levasse, pois que lhe impediam andar mais ligeiro.
Arrastando-se conforme pôde, chegou próximo de uma fonte ficando contente por
encontrar com que molhar as goelas e criar alento para a caminhada.
Não querendo estragar as pedras, pô-las no rebordo da fonte
e curvou-se para encher o barrete da límpida agua que corria da bica; mas,
tocando-lhes sem dar por isso, as pedras rebolaram e caíram com grande ruído
dentro d'agua.
João, assim que as viu desaparecer, saltou de contentamento
e, ajoelhando-se, agradeceu a Deus, com os olhos marejados, a mercê que lhe
havia feito de o livrar daquele peso.
- Era esta a única coisa que me incomodava! Não creio que
haja rapaz mais feliz do que eu!
E de coração ao largo, não possuindo mais coisa alguma, pôs
novamente pernas a caminho e só parou quando topou com a porta de casa de sua
mãe.
NOTA: Fiz apenas uma (rápida) atualização ortográfica do texto
português disponibilizado pelo Portal
Gutemberg. A ilustração é original da edição portuguesa de 1908 e,
infelizmente, sem a autoria. Não consegui informações sobre o tradutor Henrique Marques Junior (1881-1953).
Jacob Grimm (1785-1863) e Wilhelm Grimm (1786-1859) são dois dos mais importantes
compiladores da tradição oral europeia. Tradutores, estudiosos de história e de
linguística, os irmãos ganharam maior notoriedade ao publicar, em 1812 e 1815, Contos da Criança e do Lar (Kinder und
Hausmärchen), com narrativas que se tornaram clássicas (Branca de Neve, Cinderela, O Flautista de Hamelin, O Príncipe Sapo, Os
Músicos de Bremen, Rapunzel, Chapeuzinho Vermelho, A Bela Adormecida, João e
Maria). Na web há farto material
sobre os Grimm.
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