quinta-feira, 23 de maio de 2013

Beldemónio: Bebê, o Pensador



Ah, a arte de observar! Bebê, o Pensador é uma deliciosa crônica (ou conto) do escritor português Beldemónio (1857 - 1893). Eu a encontrei no Almanach Illustrado do Brasil-Portugal para o Anno de 1900, edição Brasiliana Digital-USP. Para facilitar a leitura, atualizei a grafia..., mas deixei algumas palavritas. A foto que a ilustra encontrei na web, infelizmente sem autoria. Apesar de bastante partilhada, apenas pela sua graça, ela me pareceu mais que pertinente para este texto cinematográfico. 


Bebê, o Pensador
Beldemónio

Zumbem duas moscas em cima do pires em que Bebê acaba de almoçar o seu leite com sopas de pão de ló. Restam migalhas no fundo escorregadio, em que a colher não pega; e as duas moscas, como que julgando mal guardado esse festim luxuoso, aproximam-se em círculos concêntricos, cada vez mais estreitos, enquanto que Bebê olha a cena com uma curiosidade que lhe põe dois vincos refletidos na fronte habitualmente serena. Os seus grandes olhos claros, a sua boca entreaberta que descobre os primeiros dentinhos, a sua altitude cheia de concentração, com a colher suspensa a meio caminho dos lábios, — revelam o trabalho cerebral de um pensador que se esforça por compreender o que vê. Desapareceu-lhe da fisionomia a tranquilidade, ao zumbir daqueles dois animaizinhos que no seu voo passam e tornam a passar por dentro de um raio de sol, tomando e abandonando logo a aparência de insetos feitos com lascas espelhentas de mica: — duas aves de rapina à espreita de uma presa!... E as suas pernas, imóveis, à dependura da alta cadeira, dão a ideia culminante da sua atenção: — por coisa nenhuma d'este mundo Bebê estaria quieto, a não ser pelo empenho na solução de um problema que certamente continha triunfos extraordinários para o seu bem-estar, para o sabor dos seus almoços futuros, talvez para o progresso da humanidade. — Porque Bebê, insensivelmente, espera descobrir no manejo daqueles adventícios, cobiçosos do resto do seu almoço, a maneira de poder ainda aproveitar as migalhas doiradas que nadam na alvura do leite... — Mas acode-lhe então uma ideia que o faz sorrir com desdém das duas moscas, como se assistisse a um esforço eminentemente ridículo de pretensão: — é claro que aquelas duas criaturitas insignificantes, muito mais pequenas do que a presa a empolgar, nunca poderão conseguir o que ele não conseguira, armado com a sua colher e podendo inclinar em todos os sentidos o pires: Bebê encolhe ligeiramente os ombros; e esse gesto traduz o pensamento informe do seu pequeno cérebro que principia a raciocinar um pouco:
— Coitadas! nem ao menos têm uma colher ! ...

*
Mas aguarda os acontecimentos, por descargo de consciência. Pouco a pouco, sempre volteando, as duas moscas têm aproximado o voo do pires, zumbindo, zumbindo sempre. Em baixo os sobejos do almoço de Bebê devem parecer-lhes um arquipélago de rochas de ouro à flor de um oceano todo branco, onde vai raiar dentro em pouco, como um oriente, a flecha estreita do sol que roda de seu vagar sobre a mesa, semelhante a um ponteiro de luz. — Vai amanhecer ali, naquelas paragens dormentes ao fundo de um abismo de porcelana, como tardiamente amanhece num vale que altas montanhas rodeiam! — E Bebê espreita sempre aqueles dois piratas do ar, ansioso de ver como eles se tirarão de dificuldades. Vagarosamente, com um jeito de ladrão noturno, para não espantar as moscas, Bebê desencosta-se da mesa até onde o espaldar da sua cadeira lhe permite, — e olha. Ha então um momento em que elas ficam imóveis em cima do pires, sustentadas por uma vibração imperceptível das asas. Depois, uma delas desce, e a outra dá mais duas voltas a espionar 0 horizonte, como para se assegurar da impunidade. Bebê exagera a sua imobilidade; e cerra os olhos, enquanto que a mosca, subitamente parada no seu giro, parece fitá-lo desconfiada, agora sem um zumbido. Quando torna a abrir os olhos, as duas aves de presa estão pousadas na vertente do pires, mesmo à beira do leite, desta vez como duas aves ribeirinhas à beira-mar, tentando peneirar com a vista a imensidão das águas. Erguem-se ao longe as ilhotas de pão de ló, abeberadas de leite na base; e as duas moscas consultam-se, enquanto que Bebê, com o olhar arregalado, a respiração suspensa, prepara o assalto que arrebatará o resto de almoço das garras dos seus comensais. O raio de sol tem entretanto marchado, vai já na borda do pires... —É manhã, enfim! — Vê-se o fundo aquele imóvel oceano, de um branco ligeiramente azulado; faísca o sol na úmida porcelana. As duas moscas, como que despertando de um bom sono, espreguiçam as asas transparentes com as patitas, aproximam-se do inesperado almoço, mergulham o ferrão no leite, chupam com voluptuosidade cega. Bebê olha um momento aquelas mal educadas, compreendendo enfim; e de súbito, espantando-as com a voz e com o gesto, toma o pires às mãos ambas, e põe-se a lambê-lo sofregamente com a língua, abandonando a colher que lhe fora inútil. Sabe-lhe melhor esse resto; depois que o tem conquistado à pirataria pelo estudo, pela observação, pela astúcia, — pelo gênio, enfim. Sente-se engrandecido, ao cabo daquele conflito de onde a sua finura saiu vencedora. Agora que as duas moscas, afugentadas, andam de novo a esvoaçar longe do pires, como que atarantadas, ele julga ouvir nos seus zumbidos um clamor de derrota que se lamenta esterilmente; e esse clamor faz um coro delicioso ao seu triunfo. Sempre lambendo o fundo do pires, Bebê, sorri-se para elas, com um arzinho de escárnio.

*
Depois, tendo saboreado o seu leite e a sua vitória, Bebê descansa, como um trabalhador que tem ganho honestamente o seu dia. Distraindo, pousa uma das mãos á beira da mesa, esperando na passagem a lista de sol que continua a rodar, cismando vagamente se ela passará também sobre os seus dedos. Com efeito, ao cabo de três minutos em que Bebê tem fitando o sol, semicerrando as pálpebras, a sua mão é alcançada por ele, e adquire subitamente uma transparência rósea. Olha então os seus dedos, mira-os e remira-os; mas punge-o de repente um pensamento profundo: — qual será verdadeiramente o papel deles, uma vez que ainda há pouco acaba de verificar a sua perfeita inutilidade no conflito da existência, perante os simples ferrões de duas moscas? — Ergue o indicador, examina-o por todos os lados: — decididamente, esse dedito que os seus olhos veem translúcido do sol, deve servir para alguma coisa, deve ter um fim que o seu cérebro não alcança. — (A não ser que...) — Bebê sorri; principia-se a fazer luz no seu espirito. Continua a remirar o dedo, voltando, pondo-o diante dos olhos, aproximando-o e afastando-o, ora embebendo-o no sol ora passando-o para a sombra, como um joalheiro que analisa uma pedra preciosa. Adivinha que vai resolver o formidando problema; e redobra de atenção, com os seus dois olhos muito vivos sobre o dedo muito espetado. Súbito, Bebê sorri-se: — num rasgo de gênio, brusco e decisivo como o grito de Archimedes, descobre afinal para que ele serve. — E recostando-se, triunfante, — mete-o altivamente no nariz!


BELDEMÓNIO, pseudônimo de Eduardo Lobo Correia de Barros (Gouveia, 10 de Dezembro de 1857 - Lisboa, 18 de Dezembro de 1893), foi cronista, contista, jornalista e tradutor. Trabalhou no Jornal da Manhã, O Comércio Português, Diário Ilustrado. Lançou as revistas As Vespas, A Má-Língua e A Cega-Rega; e os jornais O Mandarim e O Arauto. Colaborou com diversos periódicos: O Primeiro de Janeiro, O Dez de Março, A Actualidade, A Folha Nova. Traduziu Alphonse Daudet, Zola, Guy de Maupassant, Balzac. É autor de: Viagens no Chiado (1887); Do Chiado a S. Bento (1890); A Musa Loira (1890); Contos Imorais (1890). Beldemónio faleceu com apenas 36 anos de idade. No seu funeral, apenas a mulher, o irmão, e alguns poucos, amigos. O silêncio que envolveu o cronista só foi quebrado em 1902, com a edição póstuma de um terceiro livro de crónicas políticas e outras, intitulado A Volta do Chiado, e em 1917, através da publicação conjunta dos seus livros de contos A Musa Loira - Contos Imorais, com um importantíssimo prefácio de Albino Forjaz de Sampaio. Em 1942, Carlos Sombrio publicou a biografia de Beldemónio e, em 2008, Jorge Costa Lopes organizou uma Antologia do Autor, intitulada Jornal de um Artista. Fonte: Wikipédia.

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