segunda-feira, 24 de agosto de 2015

Charles Baudelaire: O Bolo

Em As duas Clarices – entre a Europa e a América: leitura e tradução de obra de Clarice Lispector na França e no Quebec, lançado em 2014, pela Editora UFPR, a escritora e tradutora Lúcia Peixoto Cherem, faz uma análise interessante da crônica-conto Perdoando Deus, de Clarice Lispector (1920-1977) e do poema em prosa O Bolo, de Charles Baudelaire (1821-1867). Em provocação ao leitor, estou publicando os dois textos. Todavia, para não induzir a leitura do conto e do poema, cito apenas um breve trecho da analogia de Lucia Cherem: “O conto Perdoando Deus e um dos poemas em prosa de Charles Baudelaire, O bolo (Le gâteau), possuem a mesma estrutura narrativa, embora, a partir de um determinado momento, evoluam em direções diferentes. Os dois (...) possuem uma mesma visão romântica do mundo que vai, aos poucos sendo revista. (...) Os dois narradores partem de uma sensação de plenitude e enfrentam uma queda brusca, voltando ao mundo real. O que os diferencia, no entanto, é o rumo que cada um deles toma depois da sensação vivida. (...) Num estudo sobre Baudelaire, W. Benjamin, lembrando Paul Valéry, afirma que todo escritor, ao relatar uma emoção vivida, necessita trabalhar com a sua memória. É tentando lembrar-se do que aconteceu que poderá ou não tocar o leitor, no sentido de esse leitor reviver com o autor a mesma sensação.”



O BOLO
Charles Baudelaire
tradução de Paulo M. de Oliveira

Eu viajava. A paisagem no meio da qual me achava era de uma grandeza e de uma nobreza irresistíveis. Alguma coisa se passou nesse momento em minha alma. Os meus pensamentos vagavam com uma ligeireza igual à da atmosfera. As paixões vulgares, como o ódio e o amor profano, pareciam-me, então, distantes como as nuvens que desfilavam no fundo dos abismos sob os meus pés. Minha alma parecia-me vasta e pura como a cúpula do céu que me cercava. Das coisas terrestres só me chegava ao coração a lembrança diminuída e apagada, como o ruído dos guizos de gado quase imperceptível que pastava ao longe, muito longe, na vertente de outra montanha. Sobre o pequeno lago imóvel, negro em sua imensa profundeza, passava às vezes a sombra de uma nuvem, como o reflexo do manto de um gigante aéreo que voasse pelo céu. Lembro-me de que essa sensação solene e rara, provocada por um grande movimento perfeitamente silencioso, enchia-me de um misto de alegria e de medo. Sentia-me em suma, graças à entusiasmadora beleza que me cercava, em perfeita paz comigo mesmo e com o universo. Creio até que, na minha perfeita beatitude e no meu total esquecimento de todo o mal terrestre, eu chegara ao ponto de não mais achar tão ridículos os jornais que pretendem que o homem nasceu bom. Foi quando a matéria incurável, renovando suas exigências, fez-me pensar em reparar o cansaço e aliviar o apetite causados por tão longa subida. Tirei do bolso um grande pedaço de pão, um copo de couro e um frasco de um certo elixir que os farmacêuticos da época vendiam aos excursionistas para que o misturassem com a água da neve.

Eu estava tranquilamente cortando o meu pão, quando um leve ruído me fez erguer os olhos. Diante de mim estava um pequeno ser andrajoso, desgrenhado, cujos olhos fundos, ferozes e como suplicantes, devoravam o pedaço de pão. Ouvi-o suspirar, então, com uma voz baixa e rouca, a palavra: Bolo! Não pude deixar de rir ao escutar o nome com que ele pretendia honrar o meu pão quase branco, e cortei para ele uma fatia que lhe ofereci. Ele se aproximou devagarinho, sem tirar os olhos do objeto de sua cobiça. Depois, apanhando a fatia com a mão, recuou de repente, como se receasse que a minha oferta não fosse sincera ou que eu já estivesse arrependido.

No mesmo instante, porém, foi derrubado por outro pequeno selvagem, saído não sei de onde e tão perfeitamente semelhante ao primeiro que se teria podido tomá-lo por um irmão gêmeo. Rolaram ambos no chão, disputando a valiosa presa, sem que nenhum quisesse sacrificar a metade pelo irmão. O primeiro, exasperado, puxou o segundo pelos cabelos; este pegou-lhe a orelha com os dentes e cuspiu-lhe uma migalha sangrenta com uma soberba praga regional. O legítimo proprietário do bolo tentou cravar as unhinhas nos olhos do usurpador; este, por sua vez, empregou toda a força para estrangular o adversário com uma das mãos, enquanto com a outra tratava de meter no bolso o prêmio do combate. Mas, reanimado pelo desespero, o vencido endireitou-se e fez rolar o vencedor por terra, com uma cabeçada no estômago. Para quê descrever uma luta hedionda, que na verdade durou mais tempo do que pareciam permiti-lo aquelas forças infantis? O bolo viajava de mão em mão e mudava de bolso a cada instante. Mas, ai de mim! Mudava também de volume. Quando, por fim, exaustos, anelantes, ensanguentados, pararam ambos pela impossibilidade de continuar, já não havia, a dizer verdade, nenhum motivo de batalha: o pedaço de pão desaparecera, todo fragmentado em migalhas semelhantes aos grãos de areia com que se misturara.

Esse espetáculo anuviou-me a paisagem. A alegria calma em que minha alma se expandia, antes de ver aqueles pequeninos homens, desapareceu por completo. E assim fiquei por muito tempo, triste, repetindo-me sem cessar:

- Há um soberbo lugar em que o pão se chama bolo, iguaria tão rara que é o suficiente para causar uma guerra perfeitamente fratricida!

*
Ilustração de Joba Tridente.2015


*
Notícia Biográfica extraída da primeira edição de Baudelaire - Pequenos Poemas em Prosa, da Athena Editora, 1937, com tradução de Paulo M. de Oliveira: Charles Pierre Baudelaire nasceu em Paris, a 09 de Abril de 1821. Era filho de um pintor amador adido à administração do Senado. Ainda muito criança, perdeu o pai, tornando sua mãe a casar-se com o coronel Aupick, que foi mais tarde marechal de campo e embaixador da França em Constantinopla, em Londres e em Madri. / Baudelaire iniciou seus estudos no colégio de Lyon e terminou-os no Liceu Luiz O Grande em 1839. A despeito da vontade da família, não quis seguir nenhuma carreira, para consagrar-se exclusivamente à literatura. Foi então que seus pais, para vencer-lhe a resistência, resolveram embarcá-lo num navio mercante com destino a Calcutá. Ele, porém, não chegou ao termo da viagem e, após uma ausência de dez meses, regressou à França. / Ao atingir a maioridade, recebeu Baudelaire uma fortuna de cerca de setenta e cinco mil francos, que o pai lhe deixara como herança. Vendo-se finalmente livre, foi morar na ilha de Saint Louis, onde travou relações de amizade com Banville, Levasseur, Prarond e outros jovens poetas e artistas. / Notável influência na formação de seu espírito exerceram as obras de Edgar Poe, seu contemporâneo, que ele, desde criança familiarizado com a língua inglesa através das viagens que fizera, traduziu para o francês com uma perícia verdadeiramente magistral, reunindo-as em cinco volumes: Histórias Extraordinárias, Novas Histórias Extraordinárias, Aventuras de Arthur Gordon Pym, Eureka e Histórias Sérias e Jocosas.  / Quanto às obras de Baudelaire, muitas das quais foram condenadas e perseguidas, passaram a constituir, logo depois de sua morte, verificada em Paris a 31 de Agosto de 1867, uma edição definitiva, composta de quatro volumes: Flores do Mal, Curiosidades Estéticas, A Arte Romântica e Pequenos Poemas em Prosa. Desse último volume, que aparece sob esse título geral, mas que encerra diferentes trabalhos, extraímos os poemas cuja primeira tradução brasileira aqui oferecemos ao público.

Paulo M. de Oliveira é tradutor, entre outras obras, de Tommaso Campanella - A cidade do Sol (1935); Alfred de Musset - Confissões de um filho do século (1936), com Adelaide Pinheiro Guimarães; Blaise Pascal - Pensamentos (1936); François Rabelais - Gargântua (1936); Charles Baudelaire - Pequenos poemas em prosa (1937); Gustave Flaubert - Madame Bovary (1937); Guido de Ruggiero - Sumário de história da Filosofia (1937); Cesare Beccaria - Dos delitos e das penas (1937); Dante Alighieri - Vida nova (1937), com Blasio Demétrio; Erasmo de Roterdã - Elogio da loucura (1939); René Descartes - Discurso sobre o método (1939); La Rochefoucauld - Máximas e reflexões (1939).  Informações sobre Paulo M. de Oliveira no site não gosto de plágio.

4 comentários:

  1. Muito boa ; principalmente da briga brava dos irmãos por um pedaço pão.
    PARABÉNS.

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    Respostas
    1. ..., grato pela visita e pelo retorno da leitura em seu comentário,Regina Lopes. ..., a forme transtorna o homem. ..., a fome transforma o homem...

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