Em As
duas Clarices – entre a Europa e a América: leitura e tradução de obra de
Clarice Lispector na França e no Quebec, lançado em 2014, pela Editora
UFPR, a escritora e tradutora Lúcia Peixoto Cherem,
faz uma análise interessante da crônica-conto Perdoando Deus, de Clarice
Lispector (1920-1977) e do poema em prosa O Bolo, de Charles
Baudelaire (1821-1867). Em provocação ao leitor, estou publicando os dois
textos. Todavia, para não induzir a leitura do conto e do poema, cito apenas um
breve trecho da analogia de Lucia Cherem: “O conto Perdoando Deus e um dos poemas em prosa de Charles Baudelaire, O bolo (Le gâteau), possuem a mesma estrutura narrativa, embora, a partir
de um determinado momento, evoluam em direções diferentes. Os dois (...)
possuem uma mesma visão romântica do mundo que vai, aos poucos sendo revista.
(...) Os dois narradores partem de uma sensação de plenitude e enfrentam uma
queda brusca, voltando ao mundo real. O que os diferencia, no entanto, é o rumo
que cada um deles toma depois da sensação vivida. (...) Num estudo sobre
Baudelaire, W. Benjamin, lembrando Paul Valéry, afirma que todo escritor, ao
relatar uma emoção vivida, necessita trabalhar com a sua memória. É tentando
lembrar-se do que aconteceu que poderá ou não tocar o leitor, no sentido de
esse leitor reviver com o autor a mesma sensação.”
PERDOANDO DEUS
Clarice
Lispector
Eu ia andando pela Avenida Copacabana e olhava
distraída edifícios, nesga de mar, pessoas, sem pensar em nada. Ainda não
percebera que na verdade não estava distraída, estava era de uma atenção sem
esforço, estava sendo uma coisa muito rara: livre. Via tudo, e à toa. Pouco a
pouco é que fui percebendo que estava percebendo as coisas. Minha liberdade
então se intensificou um pouco mais, sem deixar de ser liberdade. Não era tour de propriétaire,
nada
daquilo era meu, nem eu queria. Mas parece-me que me sentia satisfeita com o
que via.
Tive então um sentimento de que nunca ouvi
falar. Por puro carinho, eu me senti a mãe de Deus, que era a Terra, o mundo.
Por puro carinho, mesmo, sem nenhuma prepotência ou glória, sem o menor senso
de superioridade ou igualdade, eu era por carinho a mãe do que existe. Soube
também que se tudo isso "fosse mesmo" o que eu sentia - e não
possivelmente um equívoco de sentimento - que Deus sem nenhum orgulho e nenhuma
pequenez se deixaria acarinhar, e sem nenhum compromisso comigo. Ser-Lhe-ia
aceitável a intimidade com que eu fazia carinho. O sentimento era novo para
mim, mas muito certo, e não ocorrera antes apenas porque não tinha podido ser.
Sei que se ama ao que é Deus. Com amor grave, amor solene, respeito, medo, e reverência.
Mas nunca tinham me falado de carinho maternal por Ele. E assim como meu
carinho por um filho não o reduz, até o alarga, assim ser mãe do mundo era o
meu amor apenas livre.
E foi quando quase pisei num enorme rato morto.
Em menos de um segundo estava eu eriçada pelo terror de viver, em menos de um
segundo estilhaçava-me toda em pânico, e controlava como podia o meu mais profundo
grito. Quase correndo de medo, cega entre as pessoas, terminei no outro
quarteirão encostada a um poste, cerrando violentamente os olhos, que não
queriam mais ver. Mas a imagem colava-se às pálpebras: um grande rato ruivo, de
cauda enorme, com os pés esmagados, e morto, quieto, ruivo. O meu medo
desmesurado de ratos.
Toda trêmula, consegui continuar a viver. Toda
perplexa continuei a andar, com a boca infantilizada pela surpresa. Tentei
cortar a conexão entre os dois fatos: o que eu sentira minutos antes e o rato.
Mas era inútil. Pelo menos a contiguidade ligava-os. Os dois fatos tinham
ilogicamente um nexo. Espantava-me que um rato tivesse sido o meu contraponto.
E a revolta de súbito me tomou: então não podia eu me entregar desprevenida ao
amor? De que estava Deus querendo me lembrar? Não sou pessoa que precise ser lembrada
de que dentro de tudo há o sangue. Não só não esqueço o sangue de dentro como
eu o admito e o quero, sou demais o sangue para esquecer o sangue, e para mim a
palavra espiritual não tem sentido, e nem a palavra terrena tem sentido. Não era preciso ter jogado na minha cara tão nua
um rato. Não naquele instante. Bem poderia ter sido levado em conta o pavor que
desde pequena me alucina e persegue, os ratos já riram de mim, no passado do mundo
os ratos já me devoraram com pressa e raiva. Então era assim?, eu andando pelo
mundo sem pedir nada, sem precisar de nada, amando de puro amor inocente, e
Deus a me mostrar o seu rato? A grosseria de Deus me feria e insultava-me. Deus
era bruto. Andando com o coração fechado, minha decepção era tão inconsolável
como só em criança fui decepcionada. Continuei andando, procurava esquecer. Mas
só me ocorria a vingança. Mas que vingança poderia eu contra um Deus
Todo-Poderoso, contra um Deus que até com um rato esmagado podia me esmagar?
Minha vulnerabilidade de criatura só. Na minha vontade de vingança nem ao menos
eu podia encará-Lo, pois eu não sabia onde é que Ele mais estava, qual seria a
coisa onde Ele mais estava e que eu, olhando com raiva essa coisa, eu O visse?
no rato? Naquela janela? nas pedras do chão? Em mim é que Ele não estava mais.
Em mim é que eu não O via mais.
Então a vingança dos fracos me ocorreu: ah, é
assim? pois então não guardarei segredo, e vou contar. Sei que é ignóbil ter
entrado na intimidade de Alguém, e depois contar os segredos, mas vou contar -
não conte, só por carinho não conte, guarde para você mesma as vergonhas Dele -
mas vou contar, sim, vou espalhar isso que me aconteceu, dessa vez não vai
ficar por isso mesmo, vou contar o que Ele fez, vou estragar a Sua reputação.
...mas quem sabe, foi porque o mundo também é
rato, e eu tinha pensado que já estava pronta para o rato também. Porque eu me
imaginava mais forte. Porque eu fazia do amor um cálculo matemático errado:
pensava que, somando as compreensões, eu amava. Não sabia que, somando as incompreensões,
é que se ama verdadeiramente. Porque eu, só por ter tido carinho, pensei que
amar é fácil.
É porque eu não quis o amor solene, sem
compreender que a solenidade ritualiza a incompreensão e a transforma em
oferenda. E é também porque sempre fui de brigar muito, meu modo é brigando. É
porque sempre tento chegar pelo meu modo. É porque ainda não sei ceder. É
porque no fundo eu quero amar o que eu amaria - e não o que é. É porque ainda
não sou eu mesma, e então o castigo é amar um mundo que não é ele. É também
porque eu me ofendo à toa. É porque talvez eu precise que me digam com brutalidade,
pois sou muito teimosa. É porque sou muito possessiva e então me foi perguntado
com alguma ironia se eu também queria o rato para mim. É porque só poderei ser
mãe das coisas quando puder pegar um rato na mão. Sei que nunca poderei pegar
num rato sem morrer de minha pior morte. Então, pois, que eu use o magnificat que entoa às cegas
sobre o que não se sabe nem vê. E que eu use o formalismo que me afasta. Porque
o formalismo não tem ferido a minha simplicidade, e sim o meu orgulho, pois é
pelo orgulho de ter nascido que me sinto tão íntima do mundo, mas este mundo
que eu ainda extraí de mim de um grito mudo. Porque o rato existe tanto quanto
eu, e talvez nem eu nem o rato sejamos para ser vistos por nós mesmos, a
distância nos iguala. Talvez eu tenha que aceitar antes de mais nada esta minha
natureza que quer a morte de um rato. Talvez eu me ache delicada demais apenas porque
não cometi os meus crimes. Só porque contive os meus crimes, eu me acho de amor
inocente. Talvez eu não possa olhar o rato enquanto não olhar sem lividez esta
minha alma que é apenas contida. Talvez eu tenha que chamar de
"mundo" esse meu modo de ser um pouco de tudo. Como posso amar a grandeza
do mundo se não posso amar o tamanho de minha natureza? Enquanto eu imaginar
que "Deus" é bom só porque eu sou ruim, não estarei amando a nada:
será apenas o meu modo de me acusar. Eu, que sem nem ao menos ter me percorrido toda, já escolhi amar o meu contrário, e ao
meu contrário quero chamar de Deus. Eu, que jamais me habituarei a mim, estava querendo
que o mundo não me escandalizasse. Porque eu, que de mim só consegui foi me
submeter a mim mesma, pois sou tão mais inexorável do que eu, eu estava
querendo me compensar de mim mesma com uma terra menos violenta que eu. Porque
enquanto eu amar a um Deus só porque não me quero, serei um dado marcado, e o
jogo de minha vida maior não se fará. Enquanto eu inventar Deus, Ele não
existe.
*
Ilustração de Joba Tridente.2015
*
Clarice Lispector (1920
- 1977), a voz feminina mais intensa e triste da literatura brasileira, é
autora de Romances: Perto do Coração Selvagem (1943); O Lustre (1946); A Cidade Sitiada (1949); A
Maçã no Escuro (1961); A Paixão
segundo G.H. (1964); Uma Aprendizagem
ou Livro dos Prazeres (1969); Água
Viva (1973); Um Sopro de Vida
(1978)..., Novela: A hora da estrela (1977)..., Contos: Alguns contos (1952); Laços
de família (1960); A legião
estrangeira (1964); Felicidade
clandestina (1971); A imitação da
rosa (1973); A via crucis do corpo
(1974); Onde estivestes de noite?
(1974); A bela e a fera (1979)..., Crônicas: Visão do esplendor - Impressões leves (1975); Para não esquecer (1978); A
descoberta do mundo (1984)..., Literatura
infantil: O mistério do coelho
pensante (1967); A mulher que matou
os peixes (1968); A vida íntima de
Laura (1974); Quase de verdade
(1978); Como nasceram as estrelas
(1987). Há vasto material sobre
ela na web: Releituras ou Clarice Lispector ou Wikipédia, entre outros.
Nota: O conto Perdoando Deus, presente nas coletâneas Felicidade Clandestina (1971) e A Descoberta do Mundo (1984), foi
publicado, em 19.09.1970, como crônica, no Jornal do Brasil.
que bom descobri este blog, vindo lá do google+ com um simples clique. Esta página da Clarice é uma coisa gostosinha de ler como todas as outras dela. Provoca, sim, e bastante. Valeu o compartilhamento
ResponderExcluir..., olá, João Esteves, grato pela visita. ..., Clarice é sempre fascinante e misteriosa a cada leitura e ou releitura. ..., fique à vontade para voltar sempre que quiser. ..., há sempre uma pérola ao acaso e ao ocaso à espera do leitor. abs. T+
Excluir