O fascinante poema O
Viajante, do escritor Luiz Guimarães
Júnior (1845-1898), é o segundo a ser publicado aqui no Falas ao Acaso. O anterior foi o belo A Morte da Águia. O terceiro será o
sensual Idílio. Excetuando A Morte da Águia, que encontrei na
antologia Lyra
Popular Brasileira (1927), disponibilizada
pela Brasiliana-USP, os outros dois estão na edição digital do livro Sonetos
e Rimas, da Academia Brasileira de Letras. Saboreie bem
cada estrofe de O Viajante. Deixe-se
enredar por essa longa e prazerosa leitura (cinematográfica!)..., acredite, vale
cada segundo de puro deslumbramento!
O
Viajante
Luiz Guimarães Júnior
Quando da tarde a aragem
refrescava
Os brancos lótus, a palmeira
brava
E os areais ardentes,
Quando o chacal nos juncos
estendido,
Dormia ao melancólico zumbido
Das abelhas luzentes;
Quando as cegonhas, em
longínquo bando,
Iam na etérea tela desenhando
As fugitivas penas,
E a doce lua, o pensativo astro,
Arfava
como um seio de alabastro
Entre as nuvens serenas;
Sobre o elefante branco
ajaezado
De corais e rubins, – monstro sagrado
No Oceano e no Levante, –
Como visão estranha ela passava,
E em roda dela alegre caminhava
Um cortejo brilhante.
Era a princesa Aral, a
descendente
Da mais guerreira tribo, a mais valente
Das tribos africanas:
Negra e amorosa como a Noite, – havia
Nos seus profundos olhos a ardentia
Das ondas soberanas.
Mais de um guerreiro altivo e
poderoso
Vindo de longes terras glorioso
De louros revestido,
Tentou roubar-lhe o coração: no entanto,
Ela foi surda à glória, ao rogo, ao pranto
E ele partiu vencido.
Nada a ataria além do seu
deserto
Horrendo e imenso, em cujo seio aberto
Ao sol e às estrelas,
Mora o leão enorme, e o tigre escuro
Espreita à sombra do covil impuro
O sono das gazelas.
E sempre ao pôr do sol
irradiante
Sobre o nevado e esplêndido elefante
A princesa sorria,
Calcando o pó dos seus reais domínios,
Enquanto ao longe, em vagos tons
carmíneos,
Lento expirava o dia.
Ágil como a pantera e tão
mimosa
Como o botão da fulva tuberosa
Entre os juncais virentes,
Deslizava-lhe a vida sem que o pranto
Até então lhe profanasse o encanto
Dos olhos transparentes.
Um dia aos seus ouvidos
delicados
Soaram gritos, furiosos brados
Da tribo reunida:
Rápida a bela, inquieta e curiosa,
Atravessando a turba revoltosa,
– Alegre e surpreendida –
Viu entre os seus guerreiros
arquejantes,
Vingativos, coléricos, possantes,
Um branco – um forasteiro:
Firme como o destino ele sorria,
E o seu olhar heroico parecia
Lutar com o mundo inteiro.
Mil vezes mais que a cintilante
e pura
Asa da garça era a perfeita alvura
De sua ebúrnea fronte;
E o seu cabelo espesso, ondeante e loiro,
Brilhava como as alvoradas d’oiro
No pálido horizonte.
Em sua branca mão nervosa e
fina
Luzia ao sol a esbelta carabina
De emblemas esmaltada;
Sob os seus pés – empoeirada e fria –
Uma formosa antílope jazia
No flanco baleada.
– “És a rainha, bem o vejo: és
nobre,
Em tua calma fronte o olhar descobre
O mando sobranceiro;
És a Beleza: a tua formosura
Como a da Noite assombra a criatura”.
Começou o estrangeiro.
Igual ao débil nenúfar do lago
Da estiva brisa ao maternal afago
A mesquinha ignorante,
Senhora do deserto livre e infindo,
Estremecia cabisbaixa ouvindo,
O loiro viajante.
– “Dos meus perdi-me, há quase
um dia inteiro,
E um cão, leal e bravo companheiro
Que sempre me seguia,
Morreu de febre no areal ardente:
Peço-te pois um teto unicamente
Até romper o dia”.
Tímida a um tempo e majestosa,
a filha
Da grande tribo, a negra maravilha,
Virgem e soberana,
Abriu a turba com um sorriso honesto,
E ao forasteiro ofereceu num gesto
Sua régia cabana.
O sol vibrava as crepitantes
setas
Sobre
o areal em fogo: – ágeis, inquietas
As
abelhas zumbiam...
De longe em longe os gritos penetrantes
Duma afastada tropa de elefantes
Os ecos repetiam.
E do estrangeiro o sono
respeitado,
Tal como um rio plácido e sagrado,
Que
corre em abandono,
Ninguém ousou quebrar: – fora punido
Com suplícios cruéis o destemido
Que lhe turbasse o sono.
Caiu a tarde, e a noite
mansamente
Desenrolou o véu fosforescente
Pela ínvia grandeza
Da solidão tremenda e pavorosa...
No entanto, muda, trêmula, chorosa,
A cândida princesa
Cismava... Em quê? Num mundo
iluminado,
Todo de loiras frontes povoado...
E um turbilhão de cenas
Iam-lhe na alma exausta resvalando,
À rouca voz do solitário bando
Das lúgubres hienas.
Ao romper da manhã o forasteiro
Disse-lhe: – e o seu olhar longo e
fagueiro
Turbava-a e comovia –
– “Tu mereceras mais que um trono: a terra
Bem poucas almas como a tua encerra:
Deus te salve, Maria”.
Quando do céu na gaze
diamantina
Sumiu-se enfim a longa carabina
Do moço viandante,
Ela curvou a fronte dolorida,
Como sucede à antílope ferida
E à corsa agonizante.
Nunca mais ao luzir do sol
cadente,
Sobre o elefante branco a onipotente
Princesa acompanhada
Por seus fiéis e inúmeros guerreiros,
Foi respirar os hálitos primeiros
Da noite embalsamada.
Nunca mais uma flor, uma
esperança
Veio adornar-lhe a fronte, e à semelhança
Do
meigo aloés queimado
Pelo simum revolto, ela sentia
Faltar-lhe o sangue e em ânsias comprimia
O seio amargurado.
Às vezes – só – em frente do
deserto
O seu olhar saudoso, vago e incerto
No espaço se embebia,
E a sua boca tremulante e pura
Repetia com mística ternura:
“Deus te salve, Maria”.
A tribo inteira em grupos,
lacrimosa,
Contemplava-a de longe, e a mão calosa
Do possante guerreiro,
Brandindo a lança – que o furor agita –
Ameaçava a sombra ímpia e maldita
Do branco aventureiro.
E o dia frouxo e lânguido
expirava:
O sol de mornas vagas inundava
As solidões medonhas...
E além, além, no éter transparente
Ia-se destacando lentamente
O voo das cegonhas.
*
Ilustração de Joba Tridente -
2015
LUIZ
Caetano Pereira GUIMARÃES JÚNIOR
(1845-1898): advogado, diplomata, escritor (de verso e prosa), jornalista e
teatrólogo brasileiro. Graduado pela Faculdade de Direito do Recife, seguiu a
carreira diplomática, servindo em Santiago do Chile, Roma e Lisboa..., onde, ao
se aposentar, fixou moradia e desfrutou da prazerosa companhia de Eça de
Queirós, Ramalho Ortigão, Guerra Junqueiro, Fialho Almeida. Guimarães Júnior
foi membro fundador da Academia Brasileira de Letras e colaborador de diversos
veículos de comunicação: Jornal do
Domingo: Revista Universal (1881-1888); Ribaltas e Gambiarras (1881), A
Reforma; A República; O Correio Paulistano; Imprensa Acadêmica de São Paulo; Gazeta de Notícias. Na web há farto
material sobre Luiz Guimarães Junior,
autor de Poesia: Corimbos (1866); Noturnos (1872); Sonetos e
Rimas (1880); Ficção: Filigranas (1872); Contos sem Pretensão (1872); Curvas
e Ziguezagues (1872), Caprichos
Humorísticos em Prosa (1872). Romance:
Lírio Branco (1862); A Família Agulha (1870); Teatro: Uma Cena Contemporânea (1862); As
Quedas Fatais; André Vidal; As Joias Indiscretas; Um Pequeno Demônio; O Caminho Mais Curto; Os
Amores Que Passam; Valentina; A Alma Do Outro Mundo (1913); Biografias: A. Carlos Gomes; Pedro
Américo (1871). Iracema Guimarães Vilela, filha do escritor, em seu livro Luís Guimarães Júnior: Ensaio
Biobibliográfico (1934), revela que o autor, pouco antes de morrer, em
1898, queimou diversos manuscritos (peças, crônicas e poemas), incluindo as duas
primeiras edições de Sonetos e Rimas
(1880 e 1886) suas últimas obras impressas em vida.
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