Céu e Terra. O Infinito e Além. Quem nunca
questionou a origem de todas as coisas e até de si mesmo? Em sua introdução ao Contos Populares do Brasil 2 (1897), Silvio Romero fala de dois contos sobre
a separação do Céu e da Terra. Um deles é o neozelandês Filhos do Céu e da Terra.
O segundo é Como a noite apareceu, recolhido por Couto Magalhães e que se encontra originalmente em O
Selvagem (1876), fascinante Curso de Língua Tupi viva ou Nheengatú.
Optei pela versão (com breve introdução) de
Magalhães porque a que se encontra na edição (que tenho) de Romero está
incompleta e com erros. Esta é apenas a versão portuguesa. Digitalizar a versão
tupi é muito complicado. Atualizei
rapidamente a grafia.
Couto
Magalhães: Esta lenda é
provavelmente um fragmento do Gênesis
dos antigos selvagens sul-americanos. É talvez o eco degradado e corrompido das
crenças que eles tinham, do como se formou esta ordem de cousas no meio da qual
nós vivemos, e, despida das formas grosseiras com que provavelmente a vestiram
as avós e as amas de leite, ela mostra que por toda a parte o homem se propôs
resolver este problema - de onde é que nós viemos? Aqui, como nos Vedas, como no Gênesis, a questão é no fundo resolvida pela mesma forma, isto é: no principio
todos eram felizes; uma desobediência n’um episódio de amor, uma fruta
proibida, trouxe a degradação. A lenda é, em resumo, a seguinte: no principio
não havia distinção entre animais, o homem e as plantas; tudo faltava. Também
não havia trevas. Tendo a filha da Cobra Grande se casado, não quis coabitar
com o seu marido enquanto não houvesse noite sobre o mundo, assim como havia no
fundo das águas. O marido mandou buscar a noite, que lhe foi remetida encerrada
dentro de um caroço de tucumã, bem cerrado, com proibição expressa aos
condutores de que o abrissem, pena de perderem-se a si e a seus descendentes, e
a todas as cousas. A princípio resistem à tentação, mas depois, a curiosidade
de saber o que havia dentro da fruta os fez violar a proibição, e assim se
perderam. Substituindo a fruta de tucumã pela árvore proibida, a curiosidade de
saber pela tentação do espirito maligno; parece-me haver no fundo do episódio
tanta semelhança com o pensamento asiático que vacilo e pergunto se não será um
eco degradado e transformado desse pensamento?
COMO A
NOITE APARECEU
MAI
PITUNA OIUQUAU ÃNA
Couto Magalhães
No princípio não havia noite; dia somente havia em
todo tempo. A noite estava adormecida no fundo das águas. Não havia animais;
todas as coisas falavam.
A filha da Cobra Grande, contam, casara-se com
um moço.
Este moço tinha três fâmulos fiéis. Um dia ele chamou
os três fâmulos e lhes disse: - Ide passear, porque minha mulher não quer
dormir comigo.
Os fâmulos foram-se, e então ele chamou sua
mulher para dormir com ele. A filha da Cobra Grande respondeu-lhe:
- Ainda não é noite.
O moço disse-lhe: - Não há noite, somente há
dia.
A moça falou: - Meu pai tem noite. Se queres
dormir comigo, manda buscá-la lá, pelo grande rio.
O moço chamou os três fâmulos; a moça mandou-os
à casa de seu pai para trazerem um caroço de tucumã.
Os fâmulos foram, chegaram à casa da Cobra
Grande, esta lhes entregou um caroço de tucumã muito bem fechado, e disse-lhes:
- Aqui está; levai-o. Eia! não o abrais,
senão todas as coisas se perderão.
Os fâmulos foram-se, estavam ouvindo barulho
dentro do coco de tucumã, assim: tem, ten, ten... xi... (*) era o barulho dos grilos e dos sapinhos que cantam de noite.
Quando já estavam longe, um dos fâmulos disse a
seus companheiros: - Vamos ver que barulho será este?
O piloto disse: - Não, do contrário nos
perderemos. Vamos embora, eia, rema!
Eles
foram-se e continuaram a ouvir aquele barulho dentro do coco de tucumã e não
sabiam que barulho era.
Quando já estavam muito longe, ajuntaram-se no
meio da canoa, acenderam fogo, derreteram o breu que fechava o coco e o
abriram. De repente tudo escureceu.
O piloto então disse: - Nós estamos perdidos; e
a moça, em sua casa, já sabe que nós abrimos o coco de tucumã! Eles seguiram
viagem.
A moça, em sua casa, disse então a seu marido: -
Eles soltaram a noite; vamos esperar a manhã.
Então todas as coisas que estavam espalhadas
pelo bosque, se transformaram em animais e em pássaros.
As coisas que estavam espalhadas pelo rio, se
transformaram em patos e em peixes. Do paneiro gerou-se a onça; o pescador e a
sua canoa se transformarão em pato; de sua cabeça nascerão a cabeça e bico do
pato; da canoa o corpo do pato; dos remos as pernas do pato.
A filha da Cobra Grande, quando viu a estrela-d’alva,
disse a seu marido:
- A madrugada vem rompendo. Vou dividir o dia da
noite.
Então ela enrolou um fio, e disse-lhe: - Tu
serás cujubim. Assim, ela fez o cujubim; pintou a cabeça do cujubim de branco,
com tabatinga; pintou-lhe as pernas de vermelho com urucu, e então disse-lhe: -
Cantarás para todo sempre, quando a manhã vier raiando.
Ela enrolou o fio, sacudiu cinza em cima dele, e
disse: - Tu serás inambu, para cantar nos diversos tempos da noite, e de
madrugada.
De então para cá todos os pássaros cantaram em
seus tempos, e de madrugada para alegrar o princípio do dia.
Quando os três fâmulos chegaram, o moço
disse-lhes: - Não fostes fiéis; abristes o caroço de tucumã, soltastes a noite
e todas as coisas se perderam, e vós também que vos metamorfoseastes em
macacos, andareis para todo o sempre pelos galhos dos paus.
(A boca preta, e a risca amarela que eles têm no
braço, dizem que é ainda o sinal do breu que fechava o caroço de tucumã, que
escorreu sobre eles quando o derreteram.)
(*) Quando os selvagens narram esta parte imitam o zumbido dos
insetos que cantam à noite.
*
Ilustração de Joba Tridente (2014)
Silvio
Romero: É esta a lenda; comparem-na com a neozelandesa. Dentre os
contos indígenas alguns passaram às populações cristãs do país e outros não.
Daquele transcrito não encontramos vestígios na tradição que consultamos. O
mesmo deve ter acontecido a muitos contos africanos e por certo a alguns
portugueses: não passaram às nossas populações atuais. Mas não é somente nas
canções e contos populares que se encerra tudo o que devemos às três raças que
habitam o país.
José
Vieira Couto Magalhães nasceu em
Diamantina (MG) em 1837 e morreu no Rio de Janeiro (RJ) em 1898. Foi escritor, folclorista,
militar, político. Estudou no Seminário de Mariana; Academia Militar do Rio de
Janeiro; Artilharia de Campanha de Londres. Em 1859 concluiu o curso de
Direito, pela Faculdade de Direito de São Paulo, doutorando-se em 1860. Couto Magalhães falava inglês, francês,
alemão, italiano, tupi. É autor de: Viagem ao rio Araguaia (1863); O Selvagem
(1876); Ensaios de Antropologia (1894).
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