Céu e Terra. O Infinito e Além. Quem nunca
questionou a origem de todas as coisas e até de si mesmo? Em sua introdução ao Contos Populares do Brasil 2 (1897), Silvio Romero fala de dois contos sobre
a separação do Céu e da Terra. Um deles é o neozelandês Filhos do Céu e da Terra.
O segundo é Como a noite apareceu, recolhido por Couto Magalhães e que se encontra originalmente em O
Selvagem (1876), fascinante Curso de Língua Tupi viva ou Nheengatú.
Sílvio
Romero: (...) O mito cósmico dos nossos índios, com que
explicam a separação do dia e da noite, tem bastante analogia com a lenda da
Nova Zelândia, que da conta da separação do Céu e da Terra. O mito neozelandês
é mais épico e formoso; em ambos, porém, procura-se explicar a distinção de
dois fenômenos capitais; em ambos fala-se de esposos que estavam ou vieram a ficar
separados, e trata-se de uma revolta ou desobediência. Citemo-los para estudo comparativo,
segundo as lições de Couto de Magalhães e de Tylor. O mito cósmico
neozelandês intitula-se os Filhos do
Céu e da Terra, e é como segue.
FILHOS DO CÉU E DA TERRA
De Ranci (0 Céu) e de Papa (a Terra) saíram todos
os homens e todas as coisas. Mas o Céu e a Terra se uniram e a noite se
estendeu sobre eles e - sobre tudo que deles tinha saído, até que um dia seus
filhos reuniram-se em conselho para saber se era preferível separar os seus
pais ou matá-los. Então Tane-Mahuta, pai das florestas, disse a seus cinco
grandes irmãos: “- É melhor separá-los,
colocar o Céu sobre nossas cabeças e a Terra sob nossos pés. Deixemos o Céu
tornar-se para nós estranho, mas a Terra deverá ficar perto de nós como a mãe
que nos amamentou.” Então Rugo-Ma-Tane se levanta e procura separar o Céu e
a Terra; insiste, mas debalde; vãos foram também os esforços de Tangaroa, pai
dos peixes e dos répteis, e de Haumia-Tikitiki, pai das plantas selvagens, e de
Tu-Matuenga, deus e pai dos homens intrépidos. Tane-Mahuta, deus e pai das
florestas, se levanta e por sua vez, com toda a calma de sua força, luta corpo a
corpo com seus pais, procurando separá-los com suas mãos e braços. Enfim, para;
sua cabeça fica fortemente presa à sua mãe, a Terra; levanta os pés para
repelir seu pai, o Céu, e estende o seu dorso e braços com supremo esforço.
Ranci e Papa foram finalmente separados, e fizeram ouvir gritos entrecortados
de prantos e ameaças. Tane-Mahuta não para, aperta em torno de si a Terra com
todas as suas forças e levanta o Céu com a mesmo energia. Mas Tawir-che-Matéia,
pai dos ventos e tempestades, nunca lhe tinha consentido que sua mãe fosse
arrancada de seu esposo; e levantou-se então em seu seio um terrível desejo de
lutar contra seus irmãos.
O deus das tempestades se levantou portanto e acompanhou
seu pai para o reino superior; a fim de achar um abrigo profundo nos céus sem
limites e ocultar-se aí para sempre. Acompanhou-o toda a sua linhagem: os
ventos poderosos, as furiosas rajadas, as nuvens espessas, sombrias, ardentes, turbilhonando
com raiva, estourando com furor. Quando se acharam todos reunidos o pai no meio
deles precipita-se sobre o inimigo, Tane-Mahuta, e suas florestas gigantescas,
que estavam tranquilas, nada desconfiando, quando de repente o formidável furacão
se desencadeou sobre elas. Árvores enormes se quebraram como vidro; por todas
as partes ficaram ramos e troncos despedaçados, presa futura dos vermes e dos
insetos. Então, o pai das tempestades arroja-se às ondas e chicoteia as águas até
que elas se levantem em vagas escumosas à altura das montanhas; Tangaroa, deus
do oceano e pai de tudo que nele habita, foge atemorizado para os confins de
seu império. Seus filhos, Íkatere, pai dos peixes, e Tu-te-wehi-wehi, pai dos
répteis, procuram onde abrigar-se com segurança. “- Eia depressa, salvemo-nos todos no mar!”, brada o pai dos
peixes. “- Não, não; fujamos antes para a
terra!”, grita de seu lado o pai dos répteis. Estes entes separaram-se,
portanto; ao passo que os peixes se refugiaram no mar; os répteis procuravam um
abrigo nas florestas e nos ervaçais. Mas o deus do mar, Tangaroa, furioso
porque os répteis, seus filhos, o tinham abandonado, depois fez sempre a guerra
a seu irmão Tane, que os acolhera em seus bosques. Tane responde a seus
ataques, fornecendo a seu irmão Tu-Matuenga, pai dos homens intrépidos, canoas,
lanças e arpões feitos de madeira de suas árvores, e cordas tecidas com as
fibras de suas plantas, para destruir os peixes, filhos do deus do mar; o deus
do mar, para vingar-se do deus das florestas, engole as canoas com as suas
vagas, inunda as arvores e as casas, e as carrega para o oceano sem fim. O deus
das tempestades volveu depois sua cólera contra seus irmãos, os deuses das
plantas selvagens e das cultivadas; mas Papa (a Terra) as ocultou tão
perfeitamente em seu seio, que o deus das tempestades as procurou em vão. Ele
arrojou-se então contra o último de seus irmãos, o pai dos homens intrépidos;
não o pôde porém abalar, apesar de todos os seus esforços. Que era para
Tu-Matuenga a cólera de seu irmão? Não havia sido ele que pensara em destruir
todos os seus parentes? Não se tinha ele mostrado valente e temerário durante a
guerra? E, entretanto, tinham os seus irmãos recuado diante do ataque terrível
do deus das tempestades e de seus filhos? O deus das florestas e sua família
tinham sido estrangulados; o deus do mar e seus filhos se tinham refugiado nas profundezas
do oceano ou escondido nos abrigos da costa; os deuses das plantas cultivadas e
selvagens tinham evitado o perigo, ocultando-se; o homem, porém, ficava de pé, impassível,
apoiado em sua mãe, a Terra.
Pouco a pouco acalmaram-se os céus, a tempestade,
e sua cólera dissipou-se. Tu-Matuenga, pai dos homens intrépidos, pôs-se a
imaginar como poderia vingar-se de seus irmãos que o tinham abandonado, quando
ele teve de resistir ao deus das tempestades. Fabricou laços com as folhas do
whanaka; os pássaros e as feras, filhos de Tane, deus das florestas, caíram em
seu poder, fez cordas com o linho e trouxe à praia os peixes, filhos de
Tangaroa, deus do mar. Foi procurar em seu abismo subterrâneo os filhos de
Rugoma-tane, a batata e todas as plantas cultivadas; o mesmo fez aos filhos de
Haumia-Tikitiki, a raiz das ervas e todas as plantas selvagens, desenterrou-as
e fê-las secar ao sol. E, todavia, vencidos seus quatro irmãos e postos a seu
serviço, não pôde triunfar do quinto; Tawir-che-Matéa, deus das tempestades,
não cessa de atacá-lo, dirige contra ele os temporais e furacões e procura
destruí-lo no mar e na terra. A cólera indomável do deus das tempestades contra
seus irmãos teve como resultado o desaparecimento da Terra debaixo das águas.
Os deuses antigos que assim submergiram a Terra, chamavam-se a Chuva terrível,
a Chuva de longa duração, a Saraiva violenta, as Cerrações, o Orvalho abundante
e o Orvalho tênue; só uma parte diminuta da Terra escapou a invasão das águas.
Por fim a luz resplandecente aumentou o mundo, e
os seres que tinham ficado ocultos entre Ranci e Papa, antes de sua separação,
se multiplicaram então sobre a Terra. Ate hoje o vasto Céu ficou separado de
sua esposa, a Terra; mas seu amor recíproco continua: os doces, os ardentes
suspiros do terno coração da esposa elevam-se constantemente para o esposo;
escapam-se das montanhas e dos vales, e os homens, em sua ingenuidade, os
denominam vapores; o vasto Céu, durante as longas e tristes noites passadas
longe de sua amada, chora frequentes lágrimas sobre seu seio, lágrimas que os homens
chamam gotas de orvalho.
Sílvio Romero: Belíssimo episódio cósmico de um povo selvagem e quase desconhecido!... Vejamos o mito tupi. Couto de Magalhães intitula-o - Como a noite apareceu (link no título).
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Ilustração
de Joba Tridente (2014)
Silvio Vasconcelos da Silveira Ramos Romero (1851 - 1914): escritor, ensaísta, crítico literário,
professor, filósofo. Romero foi um dos fundadores da Academia Brasileira de
Letras em 1897 e escreveu para diversos jornais. Silvio Romero é, entre outras obras, autor
de: A poesia contemporânea e a sua intuição naturalista (1869); Contos do
fim do século (1878); A filosofia no Brasil (1878); A
literatura brasileira e a crítica moderna (1880); Cantos Populares
do Brasil - vol. 1 e 2 (1883); Contos Populares do Brasil (1885);
História da literatura brasileira, I e II (1888); A poesia popular no
Brasil (1880); Compêndio da História da Literatura
Brasileira (1906).
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