sábado, 24 de maio de 2014

Silvio Romero: Filhos do Céu e da Terra

Céu e Terra. O Infinito e Além. Quem nunca questionou a origem de todas as coisas e até de si mesmo? Em sua introdução ao Contos Populares do Brasil 2 (1897), Silvio Romero fala de dois contos sobre a separação do Céu e da Terra. Um deles é o neozelandês Filhos do Céu e da Terra. O segundo é Como a noite apareceu, recolhido por Couto Magalhães e que se encontra originalmente em O Selvagem (1876), fascinante Curso de Língua Tupi viva ou Nheengatú.

Sílvio Romero: (...) O mito cósmico dos nossos índios, com que explicam a separação do dia e da noite, tem bastante analogia com a lenda da Nova Zelândia, que da conta da separação do Céu e da Terra. O mito neozelandês é mais épico e formoso; em ambos, porém, procura-se explicar a distinção de dois fenômenos capitais; em ambos fala-se de esposos que estavam ou vieram a ficar separados, e trata-se de uma revolta ou desobediência. Citemo-los para estudo comparativo, segundo as lições de Couto de Magalhães e de Tylor. O mito cósmico neozelandês intitula-se os Filhos do Céu e da Terra, e é como segue.



FILHOS DO CÉU E DA TERRA

De Ranci (0 Céu) e de Papa (a Terra) saíram todos os homens e todas as coisas. Mas o Céu e a Terra se uniram e a noite se estendeu sobre eles e - sobre tudo que deles tinha saído, até que um dia seus filhos reuniram-se em conselho para saber se era preferível separar os seus pais ou matá-los. Então Tane-Mahuta, pai das florestas, disse a seus cinco grandes irmãos: “- É melhor separá-los, colocar o Céu sobre nossas cabeças e a Terra sob nossos pés. Deixemos o Céu tornar-se para nós estranho, mas a Terra deverá ficar perto de nós como a mãe que nos amamentou.” Então Rugo-Ma-Tane se levanta e procura separar o Céu e a Terra; insiste, mas debalde; vãos foram também os esforços de Tangaroa, pai dos peixes e dos répteis, e de Haumia-Tikitiki, pai das plantas selvagens, e de Tu-Matuenga, deus e pai dos homens intrépidos. Tane-Mahuta, deus e pai das florestas, se levanta e por sua vez, com toda a calma de sua força, luta corpo a corpo com seus pais, procurando separá-los com suas mãos e braços. Enfim, para; sua cabeça fica fortemente presa à sua mãe, a Terra; levanta os pés para repelir seu pai, o Céu, e estende o seu dorso e braços com supremo esforço. Ranci e Papa foram finalmente separados, e fizeram ouvir gritos entrecortados de prantos e ameaças. Tane-Mahuta não para, aperta em torno de si a Terra com todas as suas forças e levanta o Céu com a mesmo energia. Mas Tawir-che-Matéia, pai dos ventos e tempestades, nunca lhe tinha consentido que sua mãe fosse arrancada de seu esposo; e levantou-se então em seu seio um terrível desejo de lutar contra seus irmãos.

O deus das tempestades se levantou portanto e acompanhou seu pai para o reino superior; a fim de achar um abrigo profundo nos céus sem limites e ocultar-se aí para sempre. Acompanhou-o toda a sua linhagem: os ventos poderosos, as furiosas rajadas, as nuvens espessas, sombrias, ardentes, turbilhonando com raiva, estourando com furor. Quando se acharam todos reunidos o pai no meio deles precipita-se sobre o inimigo, Tane-Mahuta, e suas florestas gigantescas, que estavam tranquilas, nada desconfiando, quando de repente o formidável furacão se desencadeou sobre elas. Árvores enormes se quebraram como vidro; por todas as partes ficaram ramos e troncos despedaçados, presa futura dos vermes e dos insetos. Então, o pai das tempestades arroja-se às ondas e chicoteia as águas até que elas se levantem em vagas escumosas à altura das montanhas; Tangaroa, deus do oceano e pai de tudo que nele habita, foge atemorizado para os confins de seu império. Seus filhos, Íkatere, pai dos peixes, e Tu-te-wehi-wehi, pai dos répteis, procuram onde abrigar-se com segurança. “- Eia depressa, salvemo-nos todos no mar!”, brada o pai dos peixes. “- Não, não; fujamos antes para a terra!”, grita de seu lado o pai dos répteis. Estes entes separaram-se, portanto; ao passo que os peixes se refugiaram no mar; os répteis procuravam um abrigo nas florestas e nos ervaçais. Mas o deus do mar, Tangaroa, furioso porque os répteis, seus filhos, o tinham abandonado, depois fez sempre a guerra a seu irmão Tane, que os acolhera em seus bosques. Tane responde a seus ataques, fornecendo a seu irmão Tu-Matuenga, pai dos homens intrépidos, canoas, lanças e arpões feitos de madeira de suas árvores, e cordas tecidas com as fibras de suas plantas, para destruir os peixes, filhos do deus do mar; o deus do mar, para vingar-se do deus das florestas, engole as canoas com as suas vagas, inunda as arvores e as casas, e as carrega para o oceano sem fim. O deus das tempestades volveu depois sua cólera contra seus irmãos, os deuses das plantas selvagens e das cultivadas; mas Papa (a Terra) as ocultou tão perfeitamente em seu seio, que o deus das tempestades as procurou em vão. Ele arrojou-se então contra o último de seus irmãos, o pai dos homens intrépidos; não o pôde porém abalar, apesar de todos os seus esforços. Que era para Tu-Matuenga a cólera de seu irmão? Não havia sido ele que pensara em destruir todos os seus parentes? Não se tinha ele mostrado valente e temerário durante a guerra? E, entretanto, tinham os seus irmãos recuado diante do ataque terrível do deus das tempestades e de seus filhos? O deus das florestas e sua família tinham sido estrangulados; o deus do mar e seus filhos se tinham refugiado nas profundezas do oceano ou escondido nos abrigos da costa; os deuses das plantas cultivadas e selvagens tinham evitado o perigo, ocultando-se; o homem, porém, ficava de pé, impassível, apoiado em sua mãe, a Terra.

Pouco a pouco acalmaram-se os céus, a tempestade, e sua cólera dissipou-se. Tu-Matuenga, pai dos homens intrépidos, pôs-se a imaginar como poderia vingar-se de seus irmãos que o tinham abandonado, quando ele teve de resistir ao deus das tempestades. Fabricou laços com as folhas do whanaka; os pássaros e as feras, filhos de Tane, deus das florestas, caíram em seu poder, fez cordas com o linho e trouxe à praia os peixes, filhos de Tangaroa, deus do mar. Foi procurar em seu abismo subterrâneo os filhos de Rugoma-tane, a batata e todas as plantas cultivadas; o mesmo fez aos filhos de Haumia-Tikitiki, a raiz das ervas e todas as plantas selvagens, desenterrou-as e fê-las secar ao sol. E, todavia, vencidos seus quatro irmãos e postos a seu serviço, não pôde triunfar do quinto; Tawir-che-Matéa, deus das tempestades, não cessa de atacá-lo, dirige contra ele os temporais e furacões e procura destruí-lo no mar e na terra. A cólera indomável do deus das tempestades contra seus irmãos teve como resultado o desaparecimento da Terra debaixo das águas. Os deuses antigos que assim submergiram a Terra, chamavam-se a Chuva terrível, a Chuva de longa duração, a Saraiva violenta, as Cerrações, o Orvalho abundante e o Orvalho tênue; só uma parte diminuta da Terra escapou a invasão das águas.

Por fim a luz resplandecente aumentou o mundo, e os seres que tinham ficado ocultos entre Ranci e Papa, antes de sua separação, se multiplicaram então sobre a Terra. Ate hoje o vasto Céu ficou separado de sua esposa, a Terra; mas seu amor recíproco continua: os doces, os ardentes suspiros do terno coração da esposa elevam-se constantemente para o esposo; escapam-se das montanhas e dos vales, e os homens, em sua ingenuidade, os denominam vapores; o vasto Céu, durante as longas e tristes noites passadas longe de sua amada, chora frequentes lágrimas sobre seu seio, lágrimas que os homens chamam gotas de orvalho.


Sílvio Romero: Belíssimo episódio cósmico de um povo selvagem e quase desconhecido!... Vejamos o mito tupi. Couto de Magalhães intitula-o - Como a noite apareceu (link no título).

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Ilustração de Joba Tridente (2014)


Silvio Vasconcelos da Silveira Ramos Romero (1851 - 1914): escritor, ensaísta, crítico literário, professor, filósofo. Romero foi um dos fundadores da Academia Brasileira de Letras em 1897 e escreveu para diversos jornais.  Silvio Romero é, entre outras obras, autor de: A poesia contemporânea e a sua intuição naturalista (1869); Contos do fim do século (1878); A filosofia no Brasil (1878); A literatura brasileira e a crítica moderna (1880);  Cantos Populares do Brasil - vol. 1 e 2 (1883); Contos Populares do Brasil (1885); História da literatura brasileira, I e II (1888); A poesia popular no Brasil (1880);  Compêndio da História da Literatura Brasileira (1906).

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