sábado, 3 de maio de 2014

Gaspar da Silva: Alexandre Herculano e Guerra Junqueiro

Esta divertida crônica do jornalista e escritor Gaspar da Silva, envolvendo Herculano e Junqueiro, encontrei no Almanach Popular para 1878, edição Brasiliana USP.



Alexandre Herculano e Guerra Junqueiro
Gaspar da Silva

Os jornais têm publicado ultimamente diversos episódios da vida do primeiro historiador e filósofo português.
Todos esses fatos trazidos pela imprensa ao conhecimento publico tendem a demonstrar a inabalável austeridade de caráter e a sisudez do inspirado artista, que cinzelou a colossal e assombrosa estátua de Eurico.
Entretanto, Herculano, fora das suas horas de concentração, era jovial e faceto, como o revela a seguinte anedota:

Guerra Junqueiro, ao concluir o seu notável poema A Morte de D. João, lembrou-se, muito naturalmente, de o dedicar ao grande escritor.
Pediu cartas de apresentação e dirigiu-se a Vale de Lobos, onde Herculano o recebeu com benevolência e afabilidade extremas.
Junqueiro chegara de noite a Vale de Lobos, não obstante o cansaço da jornada, prolongou até ao amanhecer a leitura do poema.
Herculano, costumado a deitar-se muito cedo, sofria, aparentemente resignado, mas intimamente constrangido, o suplício que o imaginoso poeta lhe quis infligir.
No dia imediato, Junqueiro ouvia da boca do venerando mestre a mais lisonjeira opinião acompanhada do consentimento para a dedicatória.
- Regresso a Lisboa hoje mesmo e vou cheio de orgulho, disse Junqueiro.
- Não, acudiu Herculano; o meu amigo há de permitir que eu lhe mostre também as minhas obras novas. Demore-se até amanhã.
Toda a gente supunha que Herculano possuía preciosos trabalhos inéditos e Junqueiro pensou desde logo no grande triunfo que colheria sendo o primeiro a revelar e a falar dos escritos que o autor da Historia de Portugal não mostrara aos mais íntimos amigos.
Ficou.
Herculano pediu o braço ao jovem revolucionário e lá foram os dois para a formosa quinta, em alegre conversação.
Chegados à horta, Herculano mostrou a Junqueiro a grande variedade de hortaliças, os rotundos repolhos, as belas couves, dizendo de onde mandara vir as sementes, como preparara a terra...
Dali foram ao jardim.
- Estas flores, explicava Herculano, são minhas filhas.
Fui eu que lhes dei cores tão variadas pela combinação do pólen de muitas flores...
Depois percorreram os olivais. Herculano falava sempre, não saindo de assuntos agrícolas.
À noite voltaram para a modesta vivenda. Junqueiro manifestava-se ansioso pelo cumprimento da promessa de Herculano.
Este, percebendo a ansiedade do hóspede, disse-lhe:
- Já lhe mostrei as minhas obras novas, meu amigo. Confesse que ninguém, em Portugal, come melhor, repolho do que eu...
Junqueiro ficou desapontado!


*
Ilustração: Foto e Arte de Joba Tridente (2014)


Boaventura Gaspar da Silva Barbosa (1855-1910), o Visconde de São Boaventura: jornalista polêmico e escritor modernista português. No tempo em que viveu no Brasil foi redator e diretor de diversos jornais, entre eles: A Província de S. Paulo (atual O Estado de S. Paulo); Jornal do Comércio; Diário Mercantil de São Paulo. É autor de: Antes de Soprar a Luz; O Balzac de S. Miguel de Seide; Reacção e Liberdade; Revérberos; O Livro de Luísa; A Pasta de um Jornalista; Pátria Amada. Gaspar da Silva traduziu Alphonse Daudet: Fromont jeune et Risler aîné e Charles Baudelaire: Poemetos em Prosa.

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