Há setenta anos morreu Mario de Andrade. Talvez, hoje em dia (?) seja um autor mais falado
do que lido. Atropelando conceitos e ou audaciosamente lírico, Mario de Andrade sempre surpreenderá o
leitor distraído. Como em mais duas postagens que farei aqui no Falas ao Acaso. Hoje, do livro Clan de Jabotí, publicado em 1927, o sensual Acalanto do Seringueiro. Ontem, em homenagem
a Manuel Bandeira, o belo poema n°. 3 do "Rito do Irmão Pequeno”,
de 1931. Os dois poemas encontrei em Antologia
da Moderna Poesia Brasileira - Revista Acadêmica, 1939, edição da Brasiliana
Digital-USP.
Acalanto
do Seringueiro
Mario de Andrade
Seringueiro brasileiro,
Na escureza da floresta
Seringueiro, dorme.
Ponteando o amor eu forcejo
Pra cantar uma cantiga
Que faça você dormir.
Que dificuldade enorme!
Quero cantar e não posso,
Quero sentir e não sinto
A palavra brasileira
Que faça você dormir...
Seringueiro, dorme...
Como será a escureza
Desse mato virgem do Acre?
Como serão os aromas
A macieza ou a aspereza
Desse chão que é também meu?
Que miséria! Eu não escuto
A nota do uirapuru!...
Tenho de ver por tabela,
Sentir pelo que me contam,
Você, seringueiro do Acre.
Brasileiro que nem eu.
Na escureza da floresta
Seringueiro, dorme.
Seringueiro,
seringueiro,
Queria
enxergar você...
Apalpar
você dormindo,
Mansamente,
não se assuste,
Afastando
esse cabelo
Que escorreu
na sua testa.
Algumas
coisas eu sei...
Troncudo
você não é.
Baixinho,
desmerecido,
Pálido,
Nossa Senhora!
Parece
que nem tem sangue.
Porém
cabra resistente
Está ali.
Sei que não é
Bonito
nem elegante...
Macambúsio,
pouco fala,
Não boxa,
não veste roupa
De
palm-beach... Enfim não faz
Um
desperdício de coisas
Que dão
conforto e alegria.
Mas porém
é brasileiro,
"Brasileiro
que nem eu...
Fomos nós
dois que botamos
Pra fora
Pedro II...
Somos nós
dois que devemos
Até os
olhos da cara
Pra esses
banqueiros de Londres...
Trabalhar
nós trabalhamos
Porém pra
comprar as pérolas
Do
pescocinho da moça
Do deputado
Fulano.
Companheiro,
dorme!
Porém
nunca nos olhamos
Nem
ouvimos e nem nunca
Nos
ouviremos jamais...
Não
sabemos nada um do outro,
Não nos
veremos jamais!
Seringueiro,
eu não sei nada!
E no
entanto estou rodeado
Dum
despotismo de livros,
Estes
mumbavas que vivem.
'Chupitando
vagarentos
O meu
dinheiro o meu sangue
E não dão
gosto de amor...
Me sinto
bem solitário
No
mutirão de sabença
Da minha
casa, amolado
Por
tantos livros geniais,
"sagrados",
como se diz...
E não
sinto os meus patrícios!
E não
sinto os meus gaúchos!
Seringueiro
dorme...
E não
sinto os seringueiros
Que amo
de amor infeliz...
Nem você
pode pensar
Que algum
outro brasileiro
Que seja poeta
no sul
Ande se
preocupando
Com o
seringueiro dormindo.
Desejando
pro que dorme
O bem da
felicidade...
Essas
coisas pra você
Devem ser
indiferentes.
Duma
indiferença enorme...
Porém eu
sou amigo
E quero
ver si consigo
Não
passar na sua vida
Numa indiferença
enorme.
Meu
desejo e pensamento
(... numa indiferença enorme...)
Ronda sob
as seringueiras
(... numa indiferença enorme...)
Numa
amor-de-amigo enorme...
Seringueiro,
dorme!
Num
amor-de-amigo enorme
Brasileiro,
dorme
Brasileiro,
dorme.
Num amor-de-amigo
enorme
Brasileiro,
dorme.
Brasileiro,
dorme,
Brasileiro...
dorme...
Brasileiro...
dorme.
*
Ilustração de Joba Tridente
Mário Raul de Moraes Andrade (1893-1945) foi escritor, crítico literário, musicólogo,
folclorista, ensaísta e um dos mais representativos e influentes autores no
movimento modernista brasileiro A sua obra desconcertante ainda continua de
vanguarda. Há, na web, um bocado de
bom material biográfico sobre o autor. A sua bibliografia pode ser conferida na
postagem anterior: O Poeta Come Amendoim.
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