segunda-feira, 16 de maio de 2016

Ashraf Fayadh: Tristeza Feita de Massa de Pão

Ashraf Fayadh é mais um grande poeta que conheci através das traduções do escritor Marcílio Farias. Vítima do totalitarismo na Arábia Saudita, Ashraf Fayadh causou comoção em todo mundo ao ser aprisionado e condenado à morte (em novembro de 2015) por apostasia. Ou seja, teria renegado o Islam. A prova, segundo a justiça, está em alguns poemas publicados no seu livro Instructions Within (2008). O processo contra o artista plástico e escritor, reconhecido na Europa e na Arábia Saudita, por suas curadorias de exposições de arte (Edge of Arábia) e expressiva literatura, é bastante controverso. Pesariam contra ele acusações de discussão num jogo de futebol; de ateísmo, de postar vídeo-denúncia da violência da polícia religiosa...).  No recurso apresentado do seu advogado, em fevereiro de 2016, a pena de morte foi revogada, porém imposta uma pena de oito anos de prisão, 800 chicotadas e arrependimento público. Desde o anúncio da sua morte (por decapitação) artistas de todas as áreas, Anistia Internacional, associações de escritores, PEN Internacional, grupos de direitos humanos, em todo o mundo, têm se mobilizado pela sua liberdade.

A homenagem ao escritor Ashraf Fayadh segue com a publicação de mais um dos seus intensos poemas. Numa seleção de cinco postagens, você conheceu A Última Fila Para Descendentes deRefugiados e Quatro Poemas Curtos. Hoje sabe do porquê da Tristeza Feita de Massa de Pão, em tradução portuguesa, de Marcílio Farias, e inglesa, de Jonathan Wright.., poema também presente no livro Instructions Within (2008).











Tristeza Feita de Massa de Pão
(ou, É assim que se mata um Poeta)
um poema de Ashraf Fayadh
em tradução de Marcílio Farias *

Pedaços de você se atropelam uns sobre os outros -
Misturados com seu sangue, suor, fezes, e lágrimas.
O nó na língua e na garganta apontam para o
Mar que você não enxerga nesse meio dia.
E quando a esfera solar nada
Em uma órbita prefixada há milênios -
Aí a complicação começa.
O que a calçada nunca lhe perdoou
É que você costumava pisá-la
Com seus sapatos novos
Como se fosse numa placa de concreto, com
Seus pés numa placa de sapatos
E suas pernas num prato de desgraças.

Você afina as cordas de seu pensamento para
Tocar e transformar em algo palpável a euforia mórbida com
Que enterras um crânio (o seu)
Que você preferiria não carregar sobre os ombros.
Então você empilha seus ossos numa bandeja que
Esbanja brancura como se coberta por farinha de trigo - e
Você como Fermento.
E então seu corpo incha e estufa tristeza como um pão quente no forno
Da existência que o resseca enquanto
Busca um pouco d’água no deserto entre
Sua Delicadeza e sua Resistência,
E a crosta endurece enquanto
Sua testa queima - tal qual o pão saído do forno.

E como um pão, armazenam você
Na caótica memória dessa Terra, Terra com
Um centro não de Ferro mas
De Lauh Al Mahfuz, primeiro homem
Criado pelo pesadelo dos Profetas e que oprime
Seus ombros dia após dia.
Tal qual um pão, você mofa por dentro e por fora, e
Em vão força o seu corpo a resistir nessa
Cama embranquecida como
As calçadas que refletem e são
Refletidas por superfícies que normalmente somente absorvem a luz.

E o seu corpo vai esquecendo que tudo isso é
Uma mistura complexa, e que a você resta apenas
A vaga forma de suas pernas
E que você vai cada vez mais se confundindo
Com os outros andarilhos que
(ao contrário de você)
Andam em outras calçadas e são apontados pelos dedos em riste dos outros.
Você, como aqueles, não pode andar livremente, nem falar a sua língua
Nem ir para onde quiser,
Nem tropeçar e lamentar quando deseja.
Você, mais ainda, não tem o direito de abrir a janela
De sua Alma para deixar entrar o ar e a poeira do
Deserto junto com lamentações e mais tristeza.
E as vezes você esquece que, como eles, você
É como um pedaço de pão;
E sua alma foi misturada com o nada
No dia em que você nasceu, no dia em que
Sua placenta se rompeu,
E as roupas que lhe deram ao nascer foram criadas
Para esconder seu sexo mutilado e impedir que
Outros vissem o que poderia ser visto. Tanto de você
Como das mulheres - acostumadas a rasgar as
Vestes em desespero e a pendurar retratos
De filhos treinados a desenhar nas paredes
E nos carros e nos cemitérios e ferros-velhos - treinados a marchar
E marchar em nome de alguém ou algo
Tal qual um pão.
Assim a sua alma foi misturada, batida,
Homogeneizada, fermentada, assada e
Vendida em padarias que sempre violam códigos
Sanitários (falsificados e ignorados em épocas de eleição
Usados para fins ilegais votados pelos oficiais)
E devorada
Como um Pão.

*

ilustração de Joba Tridente.2016


* Nota de Marcílio Farias: Tradução livre de A Melancholy Made of Dough feita a partir da versão inglesa de Tariq al Haydar, cujo trabalho poético e de tradução tem aparecido regularmente nas publicações The Normal School, Down & Out, Crab Orchard Review, The Cafe Irreal, The Los Angeles Review. O poema original não tem título, como a maior parte dos poemas de Fayadh. O titulo foi dado pelo primeiro tradutor.



********
A Melancholy Made of Dough
by Ashraf Fayadh
translated by Tariq al Haydar

Parts of you pile one on top of another - a mixture of your blood,
sweat, remains, and discharge from your eyes.
And discharge from your eyes.
The knot of your tongue at the midway point of the ocean,
and when the sphere of the sun swims
in a preconceived orbit -
Complications!

What the sidewalk never mentioned
is that you used to step on it
and present your shoes on a plate of concrete,
your feet on a plate of shoes,
your legs on a plate of your misfortune.
You tune the strings of your head to affect your foolish delight,
you bury a skull—you’d rather not bear.
You heap yourself on a slate that claims whiteness due to a fistful of flour—
and you ferment.
You swell and puff your sadness like a hot loaf
and dry.
You search for your water
Between your delicacy and your hardness
and your breaking.
and your forehead reddens
also, like a loaf!

You are stored
in the chaotic memory
of the earth, of its core
of al-Lauh al-Mahfuz on your shoulders

You grow mold, also, like a loaf!

In vain, you resist your body’s floundering atop the whitened slate
on your bed
on the sidewalks, on
reflecting and reflected surfaces
and surfaces that absorb light.
Your body always forgets that it’s a complex admixture,
that you have only the familiar look of your legs.
That you resemble a vagrant
whose features stick out among those who walk other walks.
He can neither master their walk nor speak their tongue;
has no right to walk as he pleases
or stumble or weep as he pleases.
No right to crack open the window of the soul
to renew its air and debris and mourning.
You forget that you too are
like a loaf!

You forget how your soul was mixed
at birth, since the day they ripped your placenta,
mixed, your soul
with clothes that conceal your genitals
and reveal what may be seen of them. Of you
and of women who have grown accustomed to ripping their own collars
and hanging portraits on walls.
Of boys who have trained themselves to draw on walls
and gravestones and cars in junkyards
and to march in your name, also,
like a loaf!

So your soul was mixed:
homogenized, fermented, kneaded, baked
and sold at stores that violated health codes,
forged—and used for illegal purposes,
voted on— and eaten
like a loaf.

* tradução postada originalmente em Arabic Literature


ASHRAF FAYADH (Abha, Arábia Saudita, 1980) é artista plástico e escritor de origem palestina. Fayadh participou de várias exposições internacionais, incluindo a Bienal de Veneza, e foi curador da exposição Edge of Arábia. Lançou em 2008 o livro Al-Ta'limât bil-dâkhil (Instructions Within), que está lhe custando 8 anos de prisão e 800 chibatadas... Seus poemas se encontram em várias publicações.

MARCÍLIO FARIAS é formado e pós-graduado pela UnB (Universidade de Brasília) em Jornalismo, Cinema e Filosofia. Em 1989 emigrou para os Estados Unidos. Vive e trabalha entre Natal (Brasil) e Phoenix-Miami-Boston (EUA). Obras publicadas/poesia: Visual Field (1996), Watermark Press, MD, EUA; O Livro Cor de Triângulo Cor-de-Rosa (2007), e Rito para Ressuscitar um Elefante (2010), ambos pela Scortecci Editora, São Paulo, Brasil. Link: Currículo completo. Poemas publicados no Falas ao Acaso: Moebius; Mandala; Passado incômodo; (John); Diálogo visto de longe na Praça de Sé.

Tariq al Haydar’s work has appeared or is forthcoming in The Normal School, Down & Out, Crab Orchard Review, The Cafe Irreal, The Los Angeles Review and others.

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