Antes de conhecer Mia Couto eu
conhecia a literatura africana. Antes de
saber que Mia Couto é branco eu sabia da literatura de autores africanos
negros. Na cor, na pele, na voz, no grito do verbo dei de cara com a literatura
africana nos “primórdios” da web, através de sites africanos que já foram
soprados para longe.
Bons tempos aqueles em que a rede era
um fascinante arquipélago com ilhotas pululando culturas deliciosamente
estranhas. Foi mergulhando naquele admirável mundo novo que descobri a rica
literatura em verso e prosa da África. Salvava uma coisa aqui e outra acolá.
Muito se perdeu disquetes afora. Com o tempo aprendi a fuçar feito porco atrás
de trufa. Nesse cavucar encontrei uma rara Antologia
de Autores Africanos: Do Rovuma ao Maputo, organizada por Carlos Pinto Pereira, em 1999, a partir
de arquivos esparsos na web. Para meu espanto a Antologia trazia algumas pérolas que admirara antes e, para minha
felicidade, alguns dados biográficos de alguns autores.
Não sou muito ligado a datas. Para
mim todo dia é dia de todo dia e do quê e de quem quiser o dia. Portanto, foi
com o encerramento da Semana da Consciência Negra, no Brasil, que se
iniciou a minha Semana da Literatura
Africana, no Falas ao Acaso, (re)publicando
alguns poemas de grandes autores africanos, como Pena e Fábula, de José Craveirinha,
O menino negro não entrou na roda,
de Geraldo Bessa, Serão Menino, de Viriato
da Cruz. Hoje, você entra nos trilhos com essa maravilha que é Castigo
Pró Comboio Malandro, do grande escritor e ativista angolano António Jacinto (1924-1991).
Este poema, que fala de um Trem de Angola que transporta alegrias e tristezas, foi publicado em Poemas (1961). A versão (gráfica) é a do Boletim Mensagem,
ano III, nº 3/4, da Casa dos Estudantes do Império, Lisboa - Portugal, 1960. O genial
compositor e cantor português Fausto
Bordalo Dias musicou e gravou Castigo
P’ro Comboio Malandro, com o título Comboio
Malandro (* link dos vídeos abaixo), em seu álbum P’ró Que Der e Vier (1974).
Castigo P’ro Comboio Malandro
António Jacinto
Esse comboio malandro
passa
passa sempre com a força dele
ué ué ué
hii hii hii
te-quem-tem te-quem-tem te-quem-tem
o comboio malandro
passa
Nas janelas muita gente:
ai bô viaje
adeujo homéé
n'ganas bonitas
quitandeiras de lenço encarnado
levam cana no Luanda p'ra vender
passa
passa sempre com a força dele
ué ué ué
hii hii hii
te-quem-tem te-quem-tem te-quem-tem
o comboio malandro
passa
Nas janelas muita gente:
ai bô viaje
adeujo homéé
n'ganas bonitas
quitandeiras de lenço encarnado
levam cana no Luanda p'ra vender
hii hii hii
aquele vagon de grades tem bois
múu múu múu
aquele vagon de grades tem bois
múu múu múu
tem outro
igual como este dos bois
leva gente,
muita gente como eu
cheio de poeira
gente triste como os bois
gente que vai no contrato.
Tem bois
que morre no viaje
mas preto não morre
canta como é criança,
Mulonde iá Késsua uádibalé
uádibalé uádibalé...
Esse comboio malandro
sozinho na estrada de ferro
passa
passa
sem respeito
ué ué ué
com muito fumo no trás
hii hii hii
te-quem-tem te-quem-tem te-quem-tem
Comboio malandro
o fogo que sai do corpo dele
vai no capim e queima
vai nas casas dos pretos e queima
Esse comboio malandro
já queimou o meu milho,
Se na lavra do milho tem pacaças
eu faço armadilhas no chão,
se na lavra tem kiombos
eu tiro a espingarda de kimbundo
e mato neles
mas se vai lá fogo do comboio malandro
- deixa! -
ué ué ué
te-quem-tem te-quem-tem te-quem-tem
só fica fumo,
muito fumo mesmo.
Mas espera só
Quando esse comboio malandro descarrilar
e os brancos chamar os pretos p'ra empurrar
eu vou
mas não empurro
- nem com chicote -
finjo só que faço força
Comboio malandro
você vai ver só o castigo
vai dormir mesmo no meio do caminho.
igual como este dos bois
leva gente,
muita gente como eu
cheio de poeira
gente triste como os bois
gente que vai no contrato.
Tem bois
que morre no viaje
mas preto não morre
canta como é criança,
Mulonde iá Késsua uádibalé
uádibalé uádibalé...
Esse comboio malandro
sozinho na estrada de ferro
passa
passa
sem respeito
ué ué ué
com muito fumo no trás
hii hii hii
te-quem-tem te-quem-tem te-quem-tem
Comboio malandro
o fogo que sai do corpo dele
vai no capim e queima
vai nas casas dos pretos e queima
Esse comboio malandro
já queimou o meu milho,
Se na lavra do milho tem pacaças
eu faço armadilhas no chão,
se na lavra tem kiombos
eu tiro a espingarda de kimbundo
e mato neles
mas se vai lá fogo do comboio malandro
- deixa! -
ué ué ué
te-quem-tem te-quem-tem te-quem-tem
só fica fumo,
muito fumo mesmo.
Mas espera só
Quando esse comboio malandro descarrilar
e os brancos chamar os pretos p'ra empurrar
eu vou
mas não empurro
- nem com chicote -
finjo só que faço força
Comboio malandro
você vai ver só o castigo
vai dormir mesmo no meio do caminho.
*
Ilustração de Joba Tridente - 2013
António Jacinto do Amaral Martins (Luanda, 1924 – Lisboa, 1991) é um dos maiores nomes da
literatura angolana e da Geração
Mensagem (*). Publicou em Notícias do Bloqueio, Itinerário, O Brado Africano. Ativista político, foi preso em 1960 e,
desterrado para Campo de Tarrafal, em Cabo Verde, cumpriu pena até 1972. Em
1973 se uniu à guerrilha MPLA (Movimento Popular de Libertação da Angola). Com
a independência de Angola, foi co-fundador da notória União de Escritores
Angolanos e Ministro da Cultura (1975 - 1978). Entre os prêmios mais
importantes que recebeu, destacam-se: Prémio
Noma, Prémio Lotus da Associação dos
Escritores Afro-Asiáticos e Prémio
Nacional de Literatura. António
Jacinto é autor de: Poemas (1961
e 1982); Vovô Bartolomeu (1979); Em Kilunje do Golungo (1984); Sobreviver em Trrafal de Santiago (1985
e 1999); Prometeu (1987); Fábulas de Sanji (1988).
(*) “A Geração Mensagem (1950-53) da literatura angolana de expressão
portuguesa formou-se na continuidade do movimento dos “Novos Intelectuais de
Angola”, cujo lema - “Vamos Descobrir Angola” - operaria uma revolução decisiva
na sociedade colonial dos fins da década de 40. Mensagem apresenta-se, assim, como órgão catalisador de um punhado
de jovens angolanos dispostos assumirem uma atitude de combate frontal ao
sistema sociocultural vigente na época. Foi sem dúvida, o mais forte contributo
para a verdadeira busca de uma cultura, de uma literatura autêntica, social e,
sobretudo, participada. Segundo os próprios mentores desta Geração, Mensagem pretendia ser o marco iniciador
de uma cultura nova, de Angola e por Angola; fundamentalmente angolana.
Cultura essa que se desejava que fosse forte, verdadeira, pujante e humana. Por
estes motivos, Mensagem proclamava,
bem alto, o slogan cultural e político de “redescobrir” Angola.” Texto
(fragmento) extraído de Infopédia.
*Descobri estes dois vídeos de Fausto
Bordalo (o Cantor Maldito) ao pesquisar sobre António Jacinto. Veja e ouça Comboio Malandro 1 e 2..., e fique parado se for capaz.
Ah, se quiser saber um pouco sobre o artista português, este é o do site Fausto - O Cantor Maldito
(link).
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