Antes de conhecer Mia Couto eu
conhecia a literatura africana. Antes de
saber que Mia Couto é branco eu sabia da literatura de autores africanos
negros. Na cor, na pele, na voz, no grito do verbo dei de cara com a literatura
africana nos “primórdios” da web, através de sites africanos que já foram
soprados para longe.
Bons tempos aqueles em que a rede era
um fascinante arquipélago com ilhotas pululando culturas deliciosamente
estranhas. Foi mergulhando naquele admirável mundo novo que descobri a rica
literatura em verso e prosa da África. Salvava uma coisa aqui e outra acolá.
Muito se perdeu disquetes afora. Com o tempo aprendi a fuçar feito porco atrás
de trufa. Nesse cavucar encontrei uma rara Antologia
de Autores Africanos: Do Rovuma ao Maputo, organizada por Carlos Pinto Pereira, em 1999, a partir
de arquivos esparsos na web. Para meu espanto a Antologia trazia algumas pérolas que admirara antes e, para minha
felicidade, alguns dados biográficos de alguns autores.
Não sou muito ligado a datas. Para
mim todo dia é dia de todo dia e do quê e de quem quiser o dia. Portanto, foi
com o encerramento da Semana da Consciência Negra, no Brasil, que se
iniciou a minha Semana da Literatura
Africana, no Falas ao Acaso, (re)publicando
alguns poemas de grandes autores africanos, como José João Craveirinha, Geraldo
Bessa, Viriato da Cruz. Você que já leu Pena
e Fábula, do moçambicano José
Craveirinha (1922-2003) e O menino negronão entrou na roda, de Geraldo Bessa (1917-1985)..., hoje fica com o
magnífico Serão Menino, do angolano Viriato
Francisco Clemente da Cruz (1928 - 1973)
Serão Menino
Viriato da Cruz
Na noite morna, escura de breu,
enquanto na vasta sanzala do céu,
de volta das estrelas, quais
fogaréus,
os anjos escutam parábolas de
santos...
na noite de breu,
ao quente da voz
de suas avós,
meninos se encantam
de contos bantus...
"Era uma vez uma corça
dona de cabra sem macho...
... ... ... ... ... ... ... ... ...
... ... ...
... Matreiro, o cágado lento
tuc... tuc... foi entrando
para o conselho animal...
("não tarde que ele chegou!")
Abriu a boca e falou -
deu a sentença final:
"- não tenham medo da força!
Se o leão o alheio retém
- luta ao Mal! Vitória ao Bem!
tire-se ao leão - dê-se à
corça."
Mas quando lá fora
o vento irado nas frestas chora
e ramos xuxualha de altas mulembas
e portas bambas batem em massembas
os meninos se apertam de olhos
abertos:
- Eué
- É cazumbi...
E a gente grande -
bem perto dali
feijão descascando para o quitende -
a gente grande com gosto ri...
Com gosto ri, porque ela diz
que o cazumbi males só faz
a quem não tem amor, aos mais
seres busca, em negra noite,
essa outra voz de cazumbi
essa outra voz - Felicidade...
*
ilustração de Joba tridente.2012
Viriato Francisco Clemente da Cruz (1928 - 1973) nasceu em Kikuvo, Porto Amboim, e estudou em
Luanda. Viriato, cuja obra tem forte apelo regionalista, foi um dos
grandes impulsionadores da poesia angolana, nas décadas de 1940/1950. Autor
engajado e um dos líderes da luta pela libertação de Angola, a poesia de Viriato
da Cruz está dispersa em várias publicações e, acredita-se completa, em uma
antologia de 1961: Poemas.
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