segunda-feira, 28 de novembro de 2016

José Craveirinha: Reza, Maria

Antes de conhecer Mia Couto eu conhecia a literatura africana.  Antes de saber que Mia Couto é branco eu sabia da literatura de autores africanos negros. Na cor, na pele, na voz, no grito do verbo dei de cara com a literatura africana nos “primórdios” da web, através de sites africanos que já foram soprados para longe.

Bons tempos aqueles em que a rede era um fascinante arquipélago com ilhotas pululando culturas deliciosamente estranhas. Foi mergulhando naquele admirável mundo novo que descobri a rica literatura em verso e prosa da África. Salvava uma coisa aqui e outra acolá. Muito se perdeu disquetes afora. Com o tempo aprendi a fuçar feito porco atrás de trufa. Nesse cavucar encontrei uma rara Antologia de Autores Africanos: Do Rovuma ao Maputo, organizada por Carlos Pinto Pereira, em 1999, a partir de arquivos esparsos na web. Para meu espanto a Antologia trazia algumas pérolas que admirara antes e, para minha felicidade, alguns dados biográficos de alguns autores.

Não sou muito ligado a datas. Para mim todo dia é dia de todo dia e do quê e de quem quiser o dia. Portanto, foi com o encerramento da Semana da Consciência Negra, no Brasil, que se iniciou a minha Semana da Literatura Africana, no Falas ao Acaso, (re)publicando alguns poemas de grandes autores africanos, como Pena e Fábula, de José Craveirinha, O menino negro não entrou na roda, de Geraldo Bessa, Serão Menino, de Viriato da Cruz e Castigo P’ro Comboio Malandro, de António Jacinto e também algo da sua rica Tradição Oral, como O passarinho e os outros animais (de Cabo Delgado), A dança do jacaré (da Ilha de Moçambique), a fábula Uma Ideia Tonta, e o conto Coração-Sozinho.

Bem, não poderia encerrar esta minha Semana da Literatura Africana sem a postagem extra do pertinente poema Reza, Mariade José Craveirinha (1922-2003). Mais uma obra-prima do mestre moçambicano para ser lida e compartilhada em todo o mundo..., até que não seja mais preciso ouvir o seu brado de dor!


        

Reza,  Maria
José Craveirinha
1ª versão

Suam no trabalho as curvadas bestas
e não são bestas
são homens, Maria!

Corre-se a pontapés os cães na fome dos ossos
e não são cães
são seres humanos, Maria!

Feras matam velhos, mulheres e crianças
e não são feras, são homens
e os velhos, as mulheres e as crianças
são os nossos pais
nossas irmãs e nossos filhos, Maria!

Crias morrem à míngua de pão
vermes na rua estendem a mão a caridade
e nem crias nem vermes são
mas aleijados meninos sem casa, Maria!

Do ódio e da guerra dos homens
das mães e das filhas violadas
das crianças mortas de anemia
e de todos os que apodrecem nos calabouços
cresce no mundo o girassol da esperança

Ah! Maria
põe as mãos e reza.
Pelos homens todos
e negros de toda a parte
põe as mãos


*
Ilustração de Joba Tridente (2014)


José João Craveirinha (1922-2003) nasceu em Maputo, Moçambique.  Considerado o maior escritor moçambicano, o primeiro a receber o Prêmio Camões, iniciou-se no jornalismo no Brado Africano e se firmou colaborando com diversos veículos de informação. Craveirinha esteve preso entre 1965 e 1969, pela PIDE (Polícia Internacional e de Defesa do Estado), na Cela 1, com Malangatana e Rui Nogar. O escritor utilizou vários pseudônimos: Mário Vieira, J.C., J. Cravo, José Cravo, Jesuíno Cravo e Abílio Cossa. É autor de Xigubo (1964 - com 13 poemas e 1980 – com 21 poemas); Cantico a un dio di Catrame (1966); Karingana ua karingana (1974);  Cela 1 (1980); Izbrannoe (1984); Maria (1988); Babalaze das hienas (1996); Hamina e outros contos (1997); Maria. Vol.2 (1998); Poemas da Prisão (2004); Poemas Eróticos (2004 - edição póstuma organizada por Fátima Mendonça).

Para conhecer um pouco mais da sua obra, sugiro o ensaio José Craveirinha, publicado no Portal Lusofonia

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...