domingo, 27 de novembro de 2016

Oralidade Africana: Coração-Sozinho

Antes de conhecer Mia Couto eu conhecia a literatura africana.  Antes de saber que Mia Couto é branco eu sabia da literatura de autores africanos negros. Na cor, na pele, na voz, no grito do verbo dei de cara com a literatura africana nos “primórdios” da web, através de sites africanos que já foram soprados para longe.

Bons tempos aqueles em que a rede era um fascinante arquipélago com ilhotas pululando culturas deliciosamente estranhas. Foi mergulhando naquele admirável mundo novo que descobri a rica literatura em verso e prosa da África. Salvava uma coisa aqui e outra acolá. Muito se perdeu disquetes afora. Com o tempo aprendi a fuçar feito porco atrás de trufa. Nesse cavucar encontrei uma rara Antologia de Autores Africanos: Do Rovuma ao Maputo, organizada por Carlos Pinto Pereira, em 1999, a partir de arquivos esparsos na web. Para meu espanto a Antologia trazia algumas pérolas que admirara antes e, para minha felicidade, alguns dados biográficos de alguns autores.

Não sou muito ligado a datas. Para mim todo dia é dia de todo dia e do quê e de quem quiser o dia. Portanto, foi com o encerramento da Semana da Consciência Negra, no Brasil, que se iniciou a minha Semana da Literatura Africana, no Falas ao Acaso, (re)publicando alguns poemas de grandes autores africanos, como Pena e Fábula, de José Craveirinha, O menino negro não entrou na roda, de Geraldo Bessa, Serão Menino, de Viriato da Cruz e Castigo P’ro Comboio Malandro, de António Jacinto e também algo da sua rica Tradição Oral, como O passarinho e os outros animais (de Cabo Delgado), A dança do jacaré (da Ilha de Moçambique) e a fábula Uma Ideia Tonta. Hoje você se enternece com o belo conto tradicional Coração-Sozinho



CORAÇÃO-SOZINHO
Tradição Oral Africana

O Leão e a Leoa tiveram três filhos; um deu a si próprio o nome de Coração-Sozinho, o outro escolheu o de Coração-com-a-Mãe e o terceiro o de Coração-com-o-Pai.

Coração-Sozinho encontrou um porco e apanhou-o, mas não havia quem o ajudasse, porque o seu nome era Coração-Sozinho. Coração-com-a-Mãe encontrou um porco, apanhou-o e sua mãe veio logo para o ajudar a matar o animal. Comeram-no ambos. Coração-com-o-Pai apanhou também um porco. O pai veio logo para o ajudar. Mataram o porco e comeram-no os dois.

Coração-Sozinho encontrou outro porco, apanhou-o, mas não o conseguia matar. Ninguém foi em seu auxílio. Coração-Sozinho continuou nas suas caçadas, sem ajuda de ninguém. Começou a emagrecer, a emagrecer, até que um dia morreu.

Os outros continuaram cheios de saúde por não terem um coração sozinho.

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Ilustração de Joba Tridente - 2013

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