Antes de conhecer Mia Couto eu
conhecia a literatura africana. Antes de
saber que Mia Couto é branco eu sabia da literatura de autores africanos
negros. Na cor, na pele, na voz, no grito do verbo dei de cara com a literatura
africana nos “primórdios” da web, através de sites africanos que já foram
soprados para longe.
Bons tempos aqueles em que a rede era
um fascinante arquipélago com ilhotas pululando culturas deliciosamente
estranhas. Foi mergulhando naquele admirável mundo novo que descobri a rica literatura
em verso e prosa da África. Salvava uma coisa aqui e outra acolá. Muito se
perdeu disquetes afora. Com o tempo aprendi a fuçar feito porco atrás de trufa.
Nesse cavucar encontrei uma rara Antologia
de Autores Africanos: Do Rovuma ao Maputo, organizada por Carlos Pinto Pereira, em 1999, a partir
de arquivos esparsos na web. Para meu espanto a Antologia trazia algumas pérolas que admirara antes e, para minha
felicidade, alguns dados biográficos de alguns autores.
Não sou muito ligado a datas. Para mim todo dia
é dia de todo dia e do quê e de quem quiser o dia. Portanto, foi com o
encerramento da Semana da
Consciência Negra, no Brasil, que se iniciou a minha Semana da Literatura Africana,
no Falas ao Acaso,
(re)publicando alguns poemas de grandes autores africanos, como Pena e Fábula, de José Craveirinha, O menino negro não entrou na
roda, de Geraldo Bessa, Serão Menino, de Viriato da Cruz e Castigo P’ro Comboio Malandro, de António Jacinto e também algo da sua rica Tradição Oral, como O passarinho e os outros
animais (de Cabo Delgado), A dança do jacaré (da Ilha de
Moçambique) e a fábula Uma Ideia Tonta. Hoje você se enternece com o
belo conto tradicional Coração-Sozinho.
CORAÇÃO-SOZINHO
Tradição Oral Africana
O Leão e a Leoa tiveram três filhos;
um deu a si próprio o nome de Coração-Sozinho,
o outro escolheu o de Coração-com-a-Mãe e o terceiro o de Coração-com-o-Pai.
Coração-Sozinho
encontrou um porco e apanhou-o, mas não havia quem o ajudasse, porque o seu
nome era Coração-Sozinho. Coração-com-a-Mãe encontrou um porco,
apanhou-o e sua mãe veio logo para o ajudar a matar o animal. Comeram-no ambos.
Coração-com-o-Pai apanhou também um
porco. O pai veio logo para o ajudar. Mataram o porco e comeram-no os dois.
Coração-Sozinho
encontrou outro porco, apanhou-o, mas não o conseguia matar. Ninguém foi em seu
auxílio. Coração-Sozinho continuou
nas suas caçadas, sem ajuda de ninguém. Começou a emagrecer, a emagrecer, até
que um dia morreu.
Os outros continuaram cheios de saúde
por não terem um coração sozinho.
*
Ilustração
de Joba Tridente - 2013
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