terça-feira, 23 de outubro de 2012

Wenceslau de Moraes: O Cavalo Branco de Nanko



O Cavalo Branco de Nanko *
Wenceslau de Moraes

a Carlos Campos

Isto aconteceu há cerca de mil anos, em terras japonesas: um cavalo, que o grande artista Kanaoka desenhara num biombo do templo de Ninnadji, perto de Kioto, era uma tão bela criação, cheia de verdade e palpitante de vida, que todas as noites se escapava do papel para ir galopar pelos campos em roda, culturas fora, devastando a esmo as sementeiras; e o caso dava-se, claramente, com magno espanto e raiva dos campônios, que o perseguiam à pedrada. Estes campônios, impressionados pelas formas incomparáveis do animal, persuadiram-se por fim de que ele não podia ser outro senão o cavalo de Kanaoka; e a persuasão converteu-se um dia em certeza absoluta, quando viram na pintura as patas do travesso, úmidas ainda da lama fresca dos caminhos. Sem mais cerimônias, arremeteram contra a tela e furaram-lhe os olhos; e consta que nunca mais houve queixas de estragos nas fazendas.
Ainda outro cavalo de Kanaoka, que era mestre no gênero, cavalo desenhado numa parede interior do palácio imperial, tinha o vezo de ir devorar pelos jardins as flores tenras do açafrão; e só cessou a brincadeira quando alguém se lembrou de retocar a obra, amarrando o patife à parede com um pedaço de corda pintada para o efeito. 


Ora bem. De muitas maravilhas é sem duvida capaz a mão inspirada de um artista!... Esses dois cavalos de Kanaoka, nascidos de uma gota de tinta e de algumas curvas humorísticas de pincel, mas em todo o caso ungidos do sopro sublime do exímio mestre, animavam-se por momentos, soltavam-se da tela, e aí iam eles!... Felizes boêmios eram e felizes tempos eram. Arte criadora, arte radiosa das épocas passadas, porque não vais tu regendo, ainda e sempre, os destinos de todas as coisas deste mundo?...
Nestes dias que correm, deslavados e tristes, mesmo no Japão, e não cessando de divagar no mesmo assunto de cavalos, confesso francamente a quem me ler, que nada me mortifica tanto como o espetáculo dos cavalos sagrados dos Templos Xintoístas. Ora aqui estão umas cavalgaduras bem autênticas, bem vivas, bem reais, de carne e osso; e que, se fossem lidas em coisas de arte antiga nacional - mas não são, - por certo muito invejariam as simples criações no papel da mão de Kanaoka. Neste país japonês, onde parece que os seres, homens e bichos, nasceram e vivem num banho perene de sorrisos, mais desoladora se afigura ainda a condição dos pobres brutos, que um dia inspiraram estas linhas melancólicas que escrevo.

Wenceslau José de Sousa de Moraes (1854-1929) nasceu em Lisboa e faleceu em Tocushima, Japão. Frequentou a Escola Naval, tendo feito várias viagens como oficial da Marinha de Guerra pela América, África e Ásia. Fixa-se em Macau em 1891, depois de nomeado imediato da capitania do porto, inspector do ópio e professor, convivendo com Camilo Pessanha, seu amigo. É nomeado, em 1899, cônsul no Japão. Após a morte da gueixa com que passou a viver, pede exoneração do cargo (1913) e radica-se definitivamente em Tocushima, entregando-se aí à atividade literária e convertendo-se ao budismo. É um dos mais importantes autores portugueses que trataram literariamente assuntos ligados ao Oriente, em especial o Japão. Obras: Traços do Extremo Oriente - Sião, China e Japão (Lisboa, 1895), Dai-Nippon (Lisboa, 1897), Serões no Japão (Lisboa, 1905), Os Mistérios de um Telhado, O Culto do Chã (Kobe, 1905), Paisagens da China e do Japão (Lisboa, 1906), O Bon-Odori em Tocushima (Lisboa, 1916), Ó-Yoné e Ko-Haru (Porto, 1923), Relance da História do Japão (Porto, 1924), Os Serões no Japão (Lisboa, 1925), Relance da Alma Japonesa (Lisboa, 1926), Cartas Íntimas (1944), Notícias do Exílio Nipónico (Macau, 1994). Fonte: Projeto Vercial.

* Publicado em Paisagens da China e do Japão – Lisboa – 1906: Livraria Editora Viuva Tavares Cardoso. Disponibilizado pelo Projeto Gutemberg aqui.

Ilustração: Zhima - Macao. Em vez de fazer uma ilustração própria decidi procurar a obra relacionada de Kanaoka. Encontrei esta gravura chinesa no site Arte Comentada e, pela descrição de A-Line, acredito que ela tem tudo a ver com a lenda: “... algumas gravuras são feitas especialmente para serem queimadas, a fim de atrair a boa-sorte (essas são conhecidas como zhima, ou “cavalos de papel”).

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