sexta-feira, 5 de outubro de 2012

Guerra Junqueiro: O Melro - 2


E a natureza fresca, onipotente,
            Sorria castamente
Com o sorriso alegre dos heróis.
            Nas sebes orvalhadas,
Entre folhas luzentes como espadas,
            Cantavam rouxinóis.

            Os vegetais felizes
Mergulhavam as sôfregas raízes
A procurar na terra as seivas boas,
Com a avidez e as raivas tenebrosas
Das pequeninas feras vigorosas
Sugando à noite os peitos das leoas.
A lua triste, a lua merencória,
            Desdémona marmórea,
Rolava pelo azul da imensidade,
Imersa numa luz serena e fria,
            Branca como a harmonia,
            Pura como a verdade.
E entre a luz do luar e os sons e as flores,
Na atonia cruel das grandes dores,
            O melro solitário
Jazia inerte, exânime, sereno,
Bem como outrora a mãe do Nazareno
            Na noite do calvário!… 
Segundo o seu costume habitual,
            Logo de madrugada
O padre-cura foi para o quintal,
Levando a bíblia e sobraçando a enxada.
            Antes de dizer missa,
O velho abade inevitavelmente
            Tratava da hortaliça
E rezava a Deus Padre Onipotente
            Vários trechos latinos,
Salvando desta forma juntamente
As ervilhas, as almas e os pepinos.

E já de longe ia bradando:

                        “-Olé!  
            Dormiram bem?… Estimo…
            Eu lhes darei o mimo,
Canalha vil, grandíssima ralé!
Então vocês, seus almas do diabo,
Julgavam que isto que era só dar cabo,
            Da horta e do pomar,
E o bico alegre e estômago contente,
E o camelo do cura que se aguente,
Que engrole o seu latim e vá bugiar!...
Grandes larápios!.. Era o que faltava.
            Vocês irem ao milho
            E a mim mandar-me à fava!
Pois muito bem, agora que vos pilho
Eu vos ensinarei, meus safardanas!
Vocês são mariolões, são ratazanas,
Tem bico é certo, mas não tem tonsura… 
E, nas manhas, um melro nunca chega
Às manhãs naturais dum padre-cura.
O melhor vinho que encontrar na adega
É para hoje, olé!… Que bambochata!
Que petisqueira! Melros com chouriço!…
            E então a Fortunata
Que tem um dedo e um jeito para isso!…
Hei-de comer-vos todos um a um,
Lambendo os beiços, com tal gana enfim
Que comendo-vos todos, mesmo assim
Eu fico ainda quase que em jejum!
E depois de vos ter dentro da pança,
            Depois de vos jantar,
Vocês verão como o velhote dança,
Como ele é melro e sabe assobiar!…”


Mas nisto o padre-cura, titubeante,
            Quase desfalecendo,
Atônito de horror, parou diante
            Deste drama estupendo:

O melro, ao ver aproximar o abade,
            Despertou da atonia,
Lançando-se furioso contra a grade
            Do cárcere. Torcia,
Para partir  os ferros da prisão,
Crispando as unhas convulsivamente
            Com a fúria dum leão,
Batalha inútil, desespero ardente!
Quebrou as garras, depenou as asas
            E alucinado, exangue,
            Os olhos como brasas,
Herói febril, a gotejar em sangue,
Partiu num voo arrebatado e louco.
            Trazendo dentro em pouco
Preso no bico um ramo de veneno.
E belo e grande e trágico e sereno
Disse:
            “Meus filhos, a existência é boa
Só quando é livre. A liberdade é a lei.
Prende-se a asa, mas a alma voa…
Ó filhos, voemos pelo azul!… Comei!”

E mais sublime do que Cristo, quando
Morreu na cruz, maior do que Catão,
Matou os quatro filhos, trespassando
Quatro vezes o próprio coração!
Soltou, fitando o abade, uma pungente
Gargalhada de lágrimas, de dor,
E partiu pelo espaço heroicamente,
Indo cair, já morto, de repente
Num barranco com silveirais em flor.


E o velho abade, lívido de espanto,
            Exclamou afinal:
“Tudo que existe é imaculado e é santo!
Há em toda a miséria o mesmo pranto,
E em todo o coração há um grito igual.
Deus semeou de almas o universo todo.
Tudo o que vive ri e canta e chora…
Tudo foi feito com mesmo lodo,
Purificado com a mesma aurora.
Ó mistério sagrado da existência,
            Só hoje te adivinho,
Ao ver que a alma tem a mesma essência,
Pela dor, pelo amor, pela inocência,
Quer guarde um berço, quer proteja um ninho!
Só hoje sei que em toda a criatura.
Desde a mais bela até à mais impura,
Ou numa pomba ou numa fera brava,
Deus habita, Deus sonha, Deus murmura!…
…………………………………….............................
Ah, Deus é bem maior do que eu julgava!…”

E quedou silencioso. O velho mundo,
Das suas crenças antigas, num momento,
Viu-o sumir exausto, moribundo
            Nos abismos sem fundo
Do tenebroso mar do Pensamento.
E chorou e chorou… A Igreja, a Crença.
Rude montanha pavorosa, escura,
Que enchia o globo com a sombra imensa
Dos seus setenta séculos de altura;
O Himalaias de dogmas triunfantes,
Mais eternos que o bronze e que o granito,
Onde aos profetas Deus falava dantes
Entre raios e nuvens trovejantes
Lá dos confins siderais do infinito;
Esse colosso enorme, em dois instantes
Viu-o tremer, fender-se e desabar
            Numa ruína espantosa,
Só de tocar-lhe a asa vaporosa
Duma avezinha tremula, a expirar!…
…………………………………………………. .....
………………………………………………….......
E, arremessando a bíblia, o velho abade 
Murmurou: 
“Há mais fé e há mais verdade 
Há mais Deus com certeza
Nos cardos secos dum rochedo nu
Que nessa bíblia antiga… Ó Natureza,
A única bíblia verdadeira és tu!...”


Nota (que acompanha o poema)
O fato em que se baseia este poemeto, com quanto pouco conhecido, é absolutamente verdadeiro.
Os melros e algumas outras aves, como os pintassilgos e os rouxinóis, quando lhes encarceram os filhos, envenenam-nos. Muitas vezes, (sarcasmo trágico, crueldade sublime!) deixando-os vivos, arrancam-lhes a lingua!
Ora nem todos os melros, pintassilgos e rouxinóis assassinam os filhos, quando os prendem. Só o fazem os mais extraordinários, os mais heroicos. O que nos demonstra que a ação é livre e responsável, e não um simples produto d'uma fatalidade orgânica.
É pena que J. Michelet (1798 - 1874) ignorasse este fato. Que paginas divinas que ele teria escrito! L'Oiseau  (1858) ficou incompleto.

Abílio Manuel Guerra Junqueiro (17.9.1850 - 7.7.1923) foi jornalista, escritor, e também se envolveu com política. Um dos mais importantes escritores portugueses é autor, entre outros, de: Viagem À Roda Da Parvónia, A Morte De D. João (1874), Contos para a Infância (1875), A Musa Em Férias (1879), A velhice do padre eterno (1885), Finis Patriae (1890), Os Simples (1892), Oração Ao Pão (1903), Oração À Luz (1904), Gritos da Alma (1912), Pátria (1915), Poesias Dispersas (1920). Algumas obras estão disponibilizadas gratuitamente no Projeto Gutemberg.

Ilustração: Leal da Câmara (1876 - 1948) - Edição Lello & Irmãos Editores, de 1926.
Foto de abertura: Norbert Kaiser - Wiki-Commons.

Links do livro A Velhice do Padre Eterno e do poema O Melro.

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