sexta-feira, 5 de outubro de 2012

Guerra Junqueiro: O Melro

foto: Norbert Kaiser - Wiki-Commons

O Melro, de Guerra Junqueiro, é um dos poemas que mais me impressionaram. A primeira vez em que o li, há uns 30 anos, fiquei em estado de choque, diante da sua trágica beleza. Ele é intenso, provocante e desconcertante, ferino e atual na sua crítica aos hipócritas de todas as crenças. O Melro está publicado no inquietante A Velhice do Padre Eterno (1885). As ilustrações são de Leal da Câmara (1876 - 1948) para a edição da Lello & Irmãos Editores, de 1926. A foto de abertura é de Norbert Kaiser - Wiki-Commons.


          O Melro (1879)

O melro, eu conheci-o:
Era negro, vibrante, luzidio, 
Madrugador, jovial;
            Logo de manhã cedo
Começava a soltar, dentre  o arvoredo,
Verdadeiras risadas de cristal.
E assim que o padre cura abria a porta
            Que dá para o passal,
Repicando umas finas ironias,
            O melro, dentre a horta,
            Dizia-lhe: “Bons dias!”
            E o velho padre cura
Não gostava daquelas cortesias.

O cura era um velhote conservado,
Malicioso, alegre, prazenteiro;
Não tinha pombas brancas no telhado,
Nem rosas no canteiro;
Andava às lebres pelo monte, a pé,
            Livre de reumatismos,
Graças a Deus, e graças a Noé.
O melro desprezava os exorcismos
            Que o padre lhe dizia;
Cantava, assobiava alegremente
            Até que ultimamente
            O velho disse um dia:

“Nada, já não tem jeito! este ladrão
            Dá cabo dos trigais!
            Qual seria a razão
Porque Deus fez os melros e os pardais?!”

            E o melro, no entretanto,
            Honesto como um santo,
            Mal vinha no oriente
            A madrugada clara ,
Já ele andava jovial, inquieto,
Comendo alegremente, honradamente,
Todos os parasitas da seara
Desde a formiga ao mais pequeno inseto.
E apesar disto, o rude proletário,
            O bom trabalhador,
Nunca exigiu aumento de salário.

Que grande tolo o padre confessor!

            Foi para a eira o trigo;
            E armado uns espantalhos
            Disse o abade consigo:
“Acabaram-se as penas e os trabalhos.”
Mas logo de manhã, maldito espanto!
            O abade, ainda na cama,
Ouvia do melro o costumado canto,
            Ficou ardendo em chama;
            Pega na caçadeira,
            Levanta-se dum salto,
E vê o melro, a assobiar, na eira
Em cima do seu velho chapéu alto!

            Chegou a coisa a termo
Que o bom do padre-cura andava enfermo,
            Não falava nem ria,
Minado por tão intimo desgosto;
E o vermelho oleoso do seu rosto
Tornava-se amarelo dia a dia.
E foi tal a paixão, a desventura,
(Muito embora o leitor não me acredite)
            Que o bom do padre cura
            Perdera… o apetite!


Andando no quintal, um certo dia,
Lendo em voz alta o Velho Testamento,
Enxergou por acaso (que alegria!
            Que ditoso momento!)
Um ninho com seis melros, escondido
            Entre uma carvalheira.

E ao vê-los exclamou enfurecido:

“A mãe comeu o fruto proibido;
Esse fruto era a minha sementeira;
            Era o pão, e era o milho;
            Transmitiu-se o pecado.
E, se a mãe não pagou, que pague o filho,
É doutrina da Igreja. Estou vingado!”

E, engaiolando os pobres passaritos,
            Soltava exclamações:
            “É uma praga. Malditos!
Dão-me cabo de tudo estes ladrões! 
Raios os partam! andai lá que enfim…”

E deixando a gaiola pendurada,
Continuou a ler o seu latim,
            Fungando uma pitada.


Vinha tombando a noite silenciosa;
E caia por sobre a natureza
Uma serena paz religiosa,
            Uma bela tristeza
Harmônica, viril, indefinida. 
A luz crepuscular
Infiltra-nos na alma dolorida
Um misticismo heroico e salutar.
As árvores, de luz ainda doiradas,
Sobre os montes longínquos, solitários,
Tinham tomado as formas rendilhadas
            Das plantas dos herbários.
Recolhiam-se a casa os lavradores.
Dormiam virginais as coisas mansas:
    Os rebanhos e as flores,
    As aves e as crianças. 

Ia subindo a escada o velho abade;
A sua negra, atlética figura
Destacava na frouxa claridade, 
Como uma nodoa escura.
E introduzindo a chave no portal 
Murmurou entre dentes:

            “Tal e qual… tal e qual!…
Guisados com arroz são excelentes.”


Nasceu a lua. As folhas dos arbustos
Tinham o brilho meigo, aveludado,
Do sorriso dos mártires, dos justos.
Um eflúvio dormente e perfumado
Embebedava as seivas luxuriantes.
Todas as forças vivas da matéria
Murmuravam diálogos gigantes
            Pela amplidão etérea.
São precisos silêncios virginais,
Disposições simpáticas, nervosas,
Para ouvir estas falas silenciosas
            Dos mudos vegetais.
As orvalhadas, frescas espessuras
Pressentiam-se quase a germinar.
Desmaiavam-se as cândidas verduras
Nos magnetismos brancos do luar.
………………………………………………………


E nisto o melro foi direito ao ninho.
Para o agasalhar, andou buscando
Umas penugens doces como arminho,
Um feltro acetinado e brando.
            Chegou lá, e viu tudo.
Partiu como uma flecha; e, louco e mudo
Correu por todo o matagal; em vão!
Mas eis que solta de repente um grito
Indo encontrar os filhos na prisão.

“Quem vos meteu aqui?!” O mais velhito
Todo tremente, murmurou então:

“Foi aquele homem negro. - Quando veio,
Chamei, chamei… Andavas tu na horta…
Ai que susto, que susto! Ele é tão feio!…
Tive-lhe tanto medo!… Abre esta porta,
E esconde-nos debaixo da tua asa!
Olha, já vão florindo as açucenas;
Vamos a construir a nossa casa
            Num bonito lugar…
Ai! Quem me dera, minha mãe, ter penas
            Para voar, voar!”

            E o melro alucinado
            Clamou:

“Senhor! Senhor!
É porventura crime ou é pecado 
Que eu tenha muito amor
            A estes inocentes?!
Ó natureza, ó Deus, como consentes
Que me roubem assim os meus filhinhos
            Os filhos que eu criei!
Quanta dor, quanto amor, quantos carinhos,
            Quanta noite perdida
            Nem eu sei…
            E tudo, tudo em vão!
            Filhos da minha vida!
            Filhos do coração!!!…
Não bastaria a natureza inteira,
Não bastaria o céu para voardes,
E prendem-vos assim desta maneira!…
            Covardes!
A luz, a luz, o movimento insano
Eis o agulhão, a fé que nos abrasa…
            Encarcerar a asa
É encarcerar o pensamento humano.
A culpa tive-a eu, a culpa à noitinha
            Parti, deixei-os sós…
A culpa tive-a eu, e a culpa é minha,
            De mais ninguém!… Que atroz!
            E eu devia sabê-lo!
Eu tinha obrigação de adivinhar…
Remorso eterno! Eterno pesadelo!…

....................................................................

Falta-me a luz e o ar!… Oh, quem me dera
Ser abutre ou ser fera
Para partir o cárcere maldito!…
E como a noite é límpida e formosa! 
Nem um ai, nem um grito… 
Que noite triste! Oh noite silenciosa!…”


                                              Conclui em GuerraJunqueiro - O Melro 2


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