ADVERTÊNCIA!
Toda
religião tem lá as suas orações de adoração e ou de cura. Cada povo tem o seu
jeito peculiar de se ligar a um deus e fidelizar a sua fé. A igreja católica,
que escravizou física e espiritualmente grande parte da humanidade aos seus
dogmas e ritos (que sem o nexo “pagão” original, perdeu o sentido), exterminou
civilizações em nome da paz e do amor a um deus tirânico (ou seria titânico?),
também inventou (e incentivou) a santificação.
Eu sou um
livre pensador livre desde a adolescência, quando me dei conta da hipocrisia
católica em seu verbo nada cristão. Desde então saí em busca (continuo na
estrada!) da compreensão do sagrado e do profano. Nesta Semana Santa (para
católicos praticantes) vou postar uma literatura compilada de edições raras, que
se destaca pela idiossincrasia religiosa. Preferencialmente mantendo a grafia antiga.
Há sete anos ou oito anos , pesquisando arquivos
literários do Projeto Gutemberg, encontrei uma pérola
raríssima: Álbum Chulo-Gaiato ou
Colleção de Receitas Para
Fazer Rir , de autoria desconhecida , publicado em
1862. Como hoje é domingo, vou
começar com o adorável e divertidíssimo conto Pratica feita à missa do dia pelo muito reverendo prior de... -
onde fiquei sabendo que a cantiga do Pirulito
que bate, bate não é nada inocente. Pesquisei
e escrevi uma das matérias mais acessadas aqui no Falas ao Acaso (link no título): O
lado chulo do Pirulito Que Bate, Bate (2009). Optei por uma
versão (do Álbum) com grafia atualizada
para facilitar a leitura (*).
Pratica
feita à missa do dia pelo muito reverendo prior de...
«Deus dixit Petro ubi sunt oves meæ; nescio,
respondit autem Petrus»
Deus disse a Pedro «que é das minhas ovelhas?» e
Pedro respondeu «eu não sei delas.»
Que bondade, que prudência, que sabedoria, meus
queridos irmãos, não devemos nós admirar em Pedro; que, mesmo no momento em que
seu Divino Mestre lhe pergunta, onde estão as minhas ovelhas; responde com toda
a delicadeza que não sabe delas, porque essas ovelhas não estavam em estado de
aparecerem perante o seu Senhor. Asneiras, meus caros ouvintes, eu não tinha
esse gênio, não sou mentiroso nem falso, não tenho papas na língua, e se o
Mestre me perguntasse, como a Pedro, onde estão as minhas ovelhas, eu logo lhe
dizia sem mais cerimonia, foram pastar para casa do diabo, Senhor.
E com efeito, se Ele tivesse vindo ontem à noite
perguntar-me pelas minhas ovelhas, que lhe havia eu de responder?
Ele que recomenda tanto no seu Evangelho, que as
ovelhas se conservem sempre separadas dos competentes bodes, o que teria Ele
dito se visse essas mesmas ovelhas misturadas com os bodes, saltando uns em
cima dos outros, e a fazerem gaifonas ao seu pastor!
Sim, amados irmãos, foi grande a balbúrdia, e ao
aspecto de tal desordem, o amor pelo meu rebanho animou-se de um santo zelo e
ardendo em fogo, corri de cajado na mão, para arrancar as minhas inocentes
ovelhas das dentuças dos lobos encarniçados. Mas, ó dor, ó desdita, ó
patifaria! as minhas ricas ovelhinhas já não escutam a minha voz; já penetradas
pelos agudos dardos daqueles diabos e inundadas pelos seus líquidos venenosos e
sedutores, estavam indóceis e levadas da breca. O meu cajado, outrora tão
poderoso, não pode juntar senão um pequeno numero, que trago para o meu curral,
onde as hei de ter fechadas e guardadas até que deem os frutos do seu
arrependimento.
Mas vós, amados ouvintes, vós, os que fostes
fieis, lamentai a desgraça de vossos irmãos; comportai-vos sempre bem, e tomai para
exemplo esses grandes santos da antiguidade; menos um tal santo Agostinho, que,
segundo dizem, foi um grande pandego, quando moço, e é por esse motivo que eu
nunca vos falo dele.
Falemos antes daquele santo Chrisologo, que diz
que um cura é um sol, e os seus fregueses são uns átomos. Mas eu não sei que
diabo de átomos vocês são! não me pagam a côngrua, querem que os case de graça
e ainda em cima dizem: «ora, estamos nas malvas para o seu padre cura, ele não tem filhos para
sustentar!» Vocês sabem lá disso? Não sabem que nós outros padres, temos mais
trabalho em os esconder, do que vocês em os fazer?...
Mas voltando à vaca fria, pensemos na vossa
conversão, se ela é possível.
Julgo que a melhor maneira de o conseguir é
falando-vos das maroteiras que se fazem na freguesia.
Por exemplo: o João da Canhota, regedor, sai à
noite e se há de vir ao sermão, vai-se meter em casa da Felícia do Frade, e não
sai de lá senão de madrugada. Diz que vai tomar chá, mas imaginem os ouvintes
que qualidade de chá ele não tomará...
Aqui não há senão desordem e imoralidade.
Imoralidade nos velhos, imoralidade nos moços, imoralidade nos grandes,
imoralidade nos pequenos.
Digo imoralidade nos velhos, porque esses
velhos, raça danada de Caim, depois de haverem passado toda a vida... em
patuscadas e pandegas, ainda mesmo arrumados ao bordão e de cabeça calva, se
vão meter em lugares suspeitos! Infames velhos de Suzana! quando é que lhes
acabarão as fúrias carnais e burriçais?
Imoralidade nos moços. Os rapazes e as raparigas
andam por essas ruas aos beijos e abraços, cantando cantigas indecentes e
imorais; ainda eu ontem ouvi a filha do Tomás da Horta e o filho do Inácio do
Dente a cantarem o Pirolito que bate que bate! Ora não há maior pouca vergonha,
uns fedelhos que ainda cheiram a cueiros e já sabem o que isto quer dizer!
Imoralidade nos grandes. Esses mariolões e essas
mocetonas que vão todos os dias para o mato, sob pretexto de que vão buscar
lenha, e por fim fazem por lá coisas do arco da velha... Lenha no forno queriam
elas, malditas!
E quando vão aos figos! O que acontece?
As raparigas sobem para cima das arvores e os
mariolões ficam em baixo, a olhar para cima e a dizer: Olha Antónia vejo-te os
calcanhares, e as pernas, e os joelhos, e o...
Ponham cobro a este escândalo, amados irmãos,
são coisas que se não devem ver senão em certas ocasiões. Eu não pego aos
rapazes e ás raparigas que vão ao mato e comam por lá o seu figuinho e mesmo
que subam ás figueiras, mas para evitar indecências, as raparigas fiquem
debaixo e os rapazes que lhes vão acima.
Imoralidade nos pequenos. Essa gaiatada miúda
que anda todos os dias a correr pelo adro cá da freguesia, onde estão as campas
dos nossos antepassados, e que depois vão fazer as suas necessidades mesmo à
porta da sacristia. Se não têm respeito pelos mortos, tenham ao menos compaixão
pelos vivos, não pode uma pessoa entrar na igreja pela porta de traz sem ficar
a bem dizer atolado até o nariz. Já disse ao sr. regedor da freguesia que
pusesse mão nestas cousas, mas por ora continua a mesma marmelada à porta da
sacristia.
Também é digno de repreensão o comportamento
dessas mulheres casadas, que sem nenhuma consideração pelos seus maridos, se
levantam do leito conjugal de madrugada, sob pretexto de levarem o gado ao
campo, e depois de andarem lá por fora a laurear, em pernas, recolhem-se para
casa frias de neve, e vão-se outra vez meter na cama com os maridos e
arrepiá-los sem piedade! Pobres homens! Se fosse comigo, que coça que elas não levavam...
Também ha certa moça cá na freguesia, que eu
trago de olho há dias, cá por certa cousa. Eu devia já dizer quem é, mas enfim
por hoje limitar-me-ei só a metê-la na sacristia e arrumar-lhe um lembrete...
domingo direi quem é, se não tomar juízo... por agora saibam unicamente que é a
única na freguesia que usa ligas encarnadas... (Pausa, rumor na igreja.)
Domingo, de hoje a oito dias, me alargarei mais
sobre os homens, coçarei as mulheres casadas, e cairei em cima das solteiras,
se não tomarem juízo daqui até lá.
Sendo hoje dia de festa e estando a chover
far-se-á a procissão só por baixo da igreja, pois eu não estou para apanhar
alguma porrada de água. Não precisa vir toda a gente a ela, basta que de cada
família venha um varão.
A propósito de procissão, tenho a dizer-vos,
amados ouvintes, que os santos cá da freguesia vão estando muito chinfrins. Eu
não dava três vinténs por eles. O São Miguel é que está assim mais direitinho,
mas o diabo que está por baixo já não tem cornos; pois olhem, não há na
freguesia poucos homens ricos no caso de lhos darem. O calvário também não está
mau; todos os instrumentos da paixão estão em bom estado, falta-lhe só o galo,
mas a isso não direi nada, porque há poucos na freguesia e as galinhas precisam
deles: no entanto se houver por aí alguma dona de casa que tenha dois, que me
mande para cá um.
Esta semana não ha jejum, podem comer tudo
quanto quiserem e bebam-lhe melhor; há só a bem-aventurada santa rainha, que
cura a tinha; é quinta feira, sexta feira há feira e domingo é a festa de São
Simão e São Judas. Também, não sei quem foi o diabo do animal que se lembrou de
pôr Judas no calendário. Juro-vos, amados ouvintes, que se não fosse domingo
não lhe fazia festa, era o que merecia o senhor S. Simão por cair na asneira de
se ir meter com semelhante tratante.
Mas acabemos com esta maçada.
Ó seu
Zé, acenda os sinos e mande tocar as velas, acenda a agua benta e bote água no turíbulo...
não, enganei-me, faça o contrario de tudo isto.
No entretanto façamos as nossas costumadas e
ordinárias orações.
Oremos pela conservação da nossa bem-aventurada
mãe católica, apostólica e romana; pela estripação da cisma e abaixamento da
hidropisia; oremos também pelos ricaços cá da freguesia, a fim de que Deus os
mantenha na sua honesta pobreza; pois se fossem mais ricos punham-nos o pé no
pescoço. Oremos pelos ausentes e pelos viajantes, afim de se deixarem por lá
estar, se estão bem; oremos pelo feliz sucesso das mulheres pejadas, afim de
que Deus lhes faça a mercê de largarem o fruto com a mesma facilidade e doçura
com que o comeram. Oremos, numa palavra, pela conservação dos bens da terra,
como salada, couves, batatas, pepinos e tomates, e pela extinção dos seus
males, como formigas, lagartos, ortigas, pulgões e ratazanas... etc.
*
Ilustrações de Joba Tridente - 2013
O Álbum Chulo-Gaiato ou
Colleção de Receitas Para
Fazer Rir é um daqueles achados
que faz a gente
confirmar que
um bom
texto é atemporal .
O volume é recheado de prosa e verso sarcásticos , irônicos ,
safados , metafóricos, eróticos , românticos, chulos
ao extremo e divertidíssimos do primeiro ao último parágrafo
ou verso .
Uma Colleção de Receitas
Para Fazer Rir ,
inacreditavelmente atual , 151 anos depois da sua publicação, e tão
boa que poderia
até mesmo
ser um texto perdido de Gregório
de Matos (1623-1696) ou de Bocage
(1765-1805). Baixe gratuitamente o Álbum Chulo-Gaiato (link no título).
(*) Há uns três anos circulou pela web uma versão do Álbum com a grafia atualizada. O site
não existe mais.
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