domingo, 24 de março de 2013

Literatura Sacra e Jocosa: Anônimo 1



ADVERTÊNCIA!

Toda religião tem lá as suas orações de adoração e ou de cura. Cada povo tem o seu jeito peculiar de se ligar a um deus e fidelizar a sua fé. A igreja católica, que escravizou física e espiritualmente grande parte da humanidade aos seus dogmas e ritos (que sem o nexo “pagão” original, perdeu o sentido), exterminou civilizações em nome da paz e do amor a um deus tirânico (ou seria titânico?), também inventou (e incentivou) a santificação.

Eu sou um livre pensador livre desde a adolescência, quando me dei conta da hipocrisia católica em seu verbo nada cristão. Desde então saí em busca (continuo na estrada!) da compreensão do sagrado e do profano. Nesta Semana Santa (para católicos praticantes) vou postar uma literatura compilada de edições raras, que se destaca pela idiossincrasia religiosa. Preferencialmente mantendo a grafia antiga.

Há sete anos ou oito anos, pesquisando arquivos literários do Projeto Gutemberg, encontrei uma pérola raríssima: Álbum Chulo-Gaiato ou Colleção de Receitas Para Fazer Rir, de autoria desconhecida, publicado em 1862. Como hoje é domingo, vou começar com o adorável e divertidíssimo conto Pratica feita à missa do dia pelo muito reverendo prior de... - onde fiquei sabendo que a cantiga do Pirulito que bate, bate não é nada inocente. Pesquisei e escrevi uma das matérias mais acessadas aqui no Falas ao Acaso (link no título): O lado chulo do Pirulito Que Bate, Bate (2009).  Optei por uma versão (do Álbum) com grafia atualizada para facilitar a leitura (*).



Pratica feita à missa do dia pelo muito reverendo prior de...
«Deus dixit Petro ubi sunt oves meæ; nescio, respondit autem Petrus»

Deus disse a Pedro «que é das minhas ovelhas?» e Pedro respondeu «eu não sei delas.»

Que bondade, que prudência, que sabedoria, meus queridos irmãos, não devemos nós admirar em Pedro; que, mesmo no momento em que seu Divino Mestre lhe pergunta, onde estão as minhas ovelhas; responde com toda a delicadeza que não sabe delas, porque essas ovelhas não estavam em estado de aparecerem perante o seu Senhor. Asneiras, meus caros ouvintes, eu não tinha esse gênio, não sou mentiroso nem falso, não tenho papas na língua, e se o Mestre me perguntasse, como a Pedro, onde estão as minhas ovelhas, eu logo lhe dizia sem mais cerimonia, foram pastar para casa do diabo, Senhor.

E com efeito, se Ele tivesse vindo ontem à noite perguntar-me pelas minhas ovelhas, que lhe havia eu de responder?

Ele que recomenda tanto no seu Evangelho, que as ovelhas se conservem sempre separadas dos competentes bodes, o que teria Ele dito se visse essas mesmas ovelhas misturadas com os bodes, saltando uns em cima dos outros, e a fazerem gaifonas ao seu pastor!

Sim, amados irmãos, foi grande a balbúrdia, e ao aspecto de tal desordem, o amor pelo meu rebanho animou-se de um santo zelo e ardendo em fogo, corri de cajado na mão, para arrancar as minhas inocentes ovelhas das dentuças dos lobos encarniçados. Mas, ó dor, ó desdita, ó patifaria! as minhas ricas ovelhinhas já não escutam a minha voz; já penetradas pelos agudos dardos daqueles diabos e inundadas pelos seus líquidos venenosos e sedutores, estavam indóceis e levadas da breca. O meu cajado, outrora tão poderoso, não pode juntar senão um pequeno numero, que trago para o meu curral, onde as hei de ter fechadas e guardadas até que deem os frutos do seu arrependimento.

Mas vós, amados ouvintes, vós, os que fostes fieis, lamentai a desgraça de vossos irmãos; comportai-vos sempre bem, e tomai para exemplo esses grandes santos da antiguidade; menos um tal santo Agostinho, que, segundo dizem, foi um grande pandego, quando moço, e é por esse motivo que eu nunca vos falo dele.

Falemos antes daquele santo Chrisologo, que diz que um cura é um sol, e os seus fregueses são uns átomos. Mas eu não sei que diabo de átomos vocês são! não me pagam a côngrua, querem que os case de graça e ainda em cima dizem: «ora, estamos nas malvas para o seu padre cura, ele não tem filhos para sustentar!» Vocês sabem lá disso? Não sabem que nós outros padres, temos mais trabalho em os esconder, do que vocês em os fazer?...

Mas voltando à vaca fria, pensemos na vossa conversão, se ela é possível.

Julgo que a melhor maneira de o conseguir é falando-vos das maroteiras que se fazem na freguesia.

Por exemplo: o João da Canhota, regedor, sai à noite e se há de vir ao sermão, vai-se meter em casa da Felícia do Frade, e não sai de lá senão de madrugada. Diz que vai tomar chá, mas imaginem os ouvintes que qualidade de chá ele não tomará...

Aqui não há senão desordem e imoralidade. Imoralidade nos velhos, imoralidade nos moços, imoralidade nos grandes, imoralidade nos pequenos.

Digo imoralidade nos velhos, porque esses velhos, raça danada de Caim, depois de haverem passado toda a vida... em patuscadas e pandegas, ainda mesmo arrumados ao bordão e de cabeça calva, se vão meter em lugares suspeitos! Infames velhos de Suzana! quando é que lhes acabarão as fúrias carnais e burriçais?

Imoralidade nos moços. Os rapazes e as raparigas andam por essas ruas aos beijos e abraços, cantando cantigas indecentes e imorais; ainda eu ontem ouvi a filha do Tomás da Horta e o filho do Inácio do Dente a cantarem o Pirolito que bate que bate! Ora não há maior pouca vergonha, uns fedelhos que ainda cheiram a cueiros e já sabem o que isto quer dizer!

Imoralidade nos grandes. Esses mariolões e essas mocetonas que vão todos os dias para o mato, sob pretexto de que vão buscar lenha, e por fim fazem por lá coisas do arco da velha... Lenha no forno queriam elas, malditas!

E quando vão aos figos! O que acontece?

As raparigas sobem para cima das arvores e os mariolões ficam em baixo, a olhar para cima e a dizer: Olha Antónia vejo-te os calcanhares, e as pernas, e os joelhos, e o...

Ponham cobro a este escândalo, amados irmãos, são coisas que se não devem ver senão em certas ocasiões. Eu não pego aos rapazes e ás raparigas que vão ao mato e comam por lá o seu figuinho e mesmo que subam ás figueiras, mas para evitar indecências, as raparigas fiquem debaixo e os rapazes que lhes vão acima.

Imoralidade nos pequenos. Essa gaiatada miúda que anda todos os dias a correr pelo adro cá da freguesia, onde estão as campas dos nossos antepassados, e que depois vão fazer as suas necessidades mesmo à porta da sacristia. Se não têm respeito pelos mortos, tenham ao menos compaixão pelos vivos, não pode uma pessoa entrar na igreja pela porta de traz sem ficar a bem dizer atolado até o nariz. Já disse ao sr. regedor da freguesia que pusesse mão nestas cousas, mas por ora continua a mesma marmelada à porta da sacristia.

Também é digno de repreensão o comportamento dessas mulheres casadas, que sem nenhuma consideração pelos seus maridos, se levantam do leito conjugal de madrugada, sob pretexto de levarem o gado ao campo, e depois de andarem lá por fora a laurear, em pernas, recolhem-se para casa frias de neve, e vão-se outra vez meter na cama com os maridos e arrepiá-los sem piedade! Pobres homens! Se fosse comigo, que coça que elas não levavam...

Também ha certa moça cá na freguesia, que eu trago de olho há dias, cá por certa cousa. Eu devia já dizer quem é, mas enfim por hoje limitar-me-ei só a metê-la na sacristia e arrumar-lhe um lembrete... domingo direi quem é, se não tomar juízo... por agora saibam unicamente que é a única na freguesia que usa ligas encarnadas... (Pausa, rumor na igreja.)

Domingo, de hoje a oito dias, me alargarei mais sobre os homens, coçarei as mulheres casadas, e cairei em cima das solteiras, se não tomarem juízo daqui até lá.

Sendo hoje dia de festa e estando a chover far-se-á a procissão só por baixo da igreja, pois eu não estou para apanhar alguma porrada de água. Não precisa vir toda a gente a ela, basta que de cada família venha um varão.

A propósito de procissão, tenho a dizer-vos, amados ouvintes, que os santos cá da freguesia vão estando muito chinfrins. Eu não dava três vinténs por eles. O São Miguel é que está assim mais direitinho, mas o diabo que está por baixo já não tem cornos; pois olhem, não há na freguesia poucos homens ricos no caso de lhos darem. O calvário também não está mau; todos os instrumentos da paixão estão em bom estado, falta-lhe só o galo, mas a isso não direi nada, porque há poucos na freguesia e as galinhas precisam deles: no entanto se houver por aí alguma dona de casa que tenha dois, que me mande para cá um.

Esta semana não ha jejum, podem comer tudo quanto quiserem e bebam-lhe melhor; há só a bem-aventurada santa rainha, que cura a tinha; é quinta feira, sexta feira há feira e domingo é a festa de São Simão e São Judas. Também, não sei quem foi o diabo do animal que se lembrou de pôr Judas no calendário. Juro-vos, amados ouvintes, que se não fosse domingo não lhe fazia festa, era o que merecia o senhor S. Simão por cair na asneira de se ir meter com semelhante tratante.

Mas acabemos com esta maçada.

Ó seu Zé, acenda os sinos e mande tocar as velas, acenda a agua benta e bote água no turíbulo... não, enganei-me, faça o contrario de tudo isto.

No entretanto façamos as nossas costumadas e ordinárias orações.

Oremos pela conservação da nossa bem-aventurada mãe católica, apostólica e romana; pela estripação da cisma e abaixamento da hidropisia; oremos também pelos ricaços cá da freguesia, a fim de que Deus os mantenha na sua honesta pobreza; pois se fossem mais ricos punham-nos o pé no pescoço. Oremos pelos ausentes e pelos viajantes, afim de se deixarem por lá estar, se estão bem; oremos pelo feliz sucesso das mulheres pejadas, afim de que Deus lhes faça a mercê de largarem o fruto com a mesma facilidade e doçura com que o comeram. Oremos, numa palavra, pela conservação dos bens da terra, como salada, couves, batatas, pepinos e tomates, e pela extinção dos seus males, como formigas, lagartos, ortigas, pulgões e ratazanas... etc.

*
Ilustrações de Joba Tridente - 2013


O Álbum Chulo-Gaiato ou Colleção de Receitas Para Fazer Rir é um daqueles achados que faz a gente confirmar que um bom texto é atemporal. O volume é recheado de prosa e verso sarcásticos, irônicos, safados, metafóricos, eróticos, românticos, chulos ao extremo e divertidíssimos do primeiro ao último parágrafo ou verso. Uma Colleção de Receitas Para Fazer Rir, inacreditavelmente atual, 151 anos depois da sua publicação, e tão boa que poderia até mesmo ser um texto perdido de Gregório de Matos (1623-1696) ou de Bocage (1765-1805). Baixe gratuitamente o Álbum Chulo-Gaiato (link no título).

(*) Há uns três anos circulou pela web uma versão do Álbum com a grafia atualizada. O site não existe mais.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...