Retrato em Dez por Um (*)
-
Um trocadinhu, pessoali!
-
Si cada um qui passassi aqui mi
dessi um centavu eu tava feitio!
- Tem genti qui faz di contia qui nem mi vê!
- E eu é qui sô cego!
UM - Chova ou faça sol. Frio ou calor. Eles estão lá.
No mesmo lugar.
Mais certos
que um
meteorologista. Ilusões de ótica. Para uns. Cativos da própria
sina. Para outros. Há anos.
Aos pés de um
sinaleiro. No nicho
de um prédio
público. Se arrastando pelas calçadas. Deslizando entre
os diferentes. Agarrados
a um poste.
Parados no meio da praça.
Seres. Administrativamente
inexistentes. Impostos
caducados. Sucatas do capitalismo. Profissionais
da própria deficiência.
Da própria indiferença.
Da própria. Dá!
DOIS - O cisco em um olho, evita os mendigos.
No outro, ofusca os desocupados.
As lentes vencidas não
captam os deficientes. Meras pedras soltas
no caminho do apressado.
Santas desculpas no caminho
do lento. O normal
prefere o atalho!
TRÊS - Ah, os motivos
sempre
expostos! O físico
incompleto: Dor! A cabeça incompleta: Inveja! A educação incompleta:
Frustração! A classe social incompleta:
Deus Me Paga!
QUATRO - O olhar sempre incômodo, de falsa
ou apavorante súplica
dos pedintes, traz muita
gente à realidade.
Ajuda eu,
miudinho! Ajuda, miudinho! Ajuda!
Mãos
crédulas vagam por entre
bolsos e bolsas
à cata de um
troco, de uma moeda,
de um agradinho qualquer.
Solidariedade medrosa.
Um Deus Lhe Pague! pronto
a lhes saltar
da boca. Saltam muito,
dependendo do dia. Amém, Jesus! Com a mente automática
uma das mãos sobe e desce à aproximação de alguém.
Trêmula. Eles
tudo vêem, até
os que contornam o ponto.
A cabeça descai. O braço
levanta. Estica. Estende. A mão se abre.
A mão se fecha. Dedos
treinados conferem a esmola. Moedas.
Notas. Muitos
sugerem o valor da dádiva,
segurando uma nota de um real. Às vezes, basta o olhar!
CINCO - Um homem agarrado
a uma árvore. Agarrado
a um poste.
Agarrado a alguma coisa
vertical, suficientemente
grande para ser agarrada. Puro devaneio. A sua lamúria,
terrivelmente suplicante, vai sempre num crescendo.
Apavora os transeuntes. Baba. Quase um ator. De rua. Parece um não-homem desabando sobre
o alheio. Um homem se arrastando dia e noite. Altas horas ao sol ou à lua. Esfarrapado. Medieval. Algo saído de um quadro
de Bosch. Um verso
de Dante. Uma cena de Fellini. Uma vírgula apocalíptica. Balbucia súplicas
empurrando uma caixa com
trocados. Barrando. Atropelando os passantes. Nas costas
um cartaz
Deus Lhe
Pague. Cuspe. Mais
que um
coadjuvante. De rua.
Parece um não-homem desmanchando sob o alheio. Uma mulher
que diz nada.
Apenas olha
com cara
terrivelmente velha e suplicante. Numa terra de branco transparente. Projeta a sombra
da noite. Olha
nos olhos.
Guarda a esmola
na sacola. No final
da tarde, talvez,
o pão. Um Deus Lhe
Pague sempre lhe
escapa da frágil
boca vespertina.
Seca. Fiandeira
de destinos. De rua.
Parece uma não-mulher acusando o alheio.
Somam-lhes homem-estaca, homem-carrinho, homem-pula-pula, homem-nada.
Sexo a varejo.
Há mais homem
que mulher
na lida da pedição. Há mais mulher que homem no aluguel de criança.
Há mais criança
que adulto
na perda da própria
identidade. Sobre
todos há um
silêncio sepulcral!
SEIS - Festival de pernas amputadas. Braços
cotocos. Corpo sem
coordenação. Cabeças
ocupadas por extraterrestres, espíritos de porcos,
fantasmas do passado.
Ouvidos sem
som. Bocas
sem fala.
Olhos sem
luz. Feridas
extrapolando a alma. Gente terminal.
Interminada. Interminável. Não-gente. Não!
SETE – Infância!? Inocência!? Esperança!?
Sonho!? Futuro:
Compre um
agulheiro, tio!
Compre uma pastilha, tia! Compre uma flor
pra moça,
moço! Compre isso!
Compre aquilo! Eu
preciso vender,
se não a minha
mãe me
bate! Então, me
dê um
trocado! Faço qualquer
coisa! Me
ajude! Me dê!
Me! M! !
OITO - Um trocado! Um real! Um vale refeição! Um vale transporte! Uma ajuda
para comprar remédio para a criança! Pedem. Suplicam. Exigem inexistentes cidadãos. Ninguém
está a salvo. Nem
eles! A miséria
entre os comuns pode ser ampla, geral e irrestrita.
Depende apenas do ponto
(em) que
se avista. Ou da coleta
do dia. Não
há espaço para
amadores. Todos
são
sem alguma coisa.
Desejos (quase)
abortados. Mãos indomadas no atacado!
NOVE - Pede-se de tudo
pelas ruas, esquinas,
praças, portas de bares,
restaurantes, igrejas,
cinemas, cemitérios,
centros de compras,
caixas 24 horas.
Teatro. O pedintódromo é a céu aberto. Qualquer lugar que o movimento
prometa. Um pede. Teme ser
preso. Outro
dá. Teme ser tomado. Marcado. Vigiado. Encontrado na
esquina que
vem depois. Paraneurose. Neuroparanóia. Pesadelos.
Noites em
claro. Ouvidores
caros. Rezas obsoletas. Gorjetas dizimadas. Decimadas. Olhar
conivente de um Deus!
DEZ - Minha culpa! A Igreja.
Crescer e multiplicar. Minha
culpa! O rico.
Ser rico. Minha culpa!
O pobre. Ser pobre. Minha culpa! O empresário.
Ser lucro. Minha culpa!
O computador. Ser
futuro. Minha culpa!
O Governo.
Ser falta. Minha culpa!
O Estado. Ser
resto. Minha máxima culpa! O Pedinte.
Existir. Pedir. “Ei, doutor, uma esmola/ para um pobre que é são/ ou lhe mata de vergonha/ ou
vicia o cidadão”, cantava Gonzaguinha,
nos anos
70. Um dia
ao invés de poesia.
Ser. Cidadania!
(*) Joba Tridente
- Crônica escrita em 04.06.1997, publicada
no mesmo ano no Caderno Cultural do Jornal
A Notícia (Joinville-SC)..., e ainda
atual. Ilustração de 2013.
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