A
universalidade de Godido, poema de Vera Micaia (pseudônimo de Noémia de
Sousa) é tão tocante quanto reinante. Esse migrar, emigrar, imigrar..., fugir
da seca, do sertão, da miséria..., ir pra cidade grande..., e não olhar para
trás, não se despedir dos eus que vão se esfarelando pelo caminho, é a lógica
do desesperado, que só não consegue é matar a saudade. Publicado em Separata da Mensagem - dedicada à Poesia de
Moçambique (196?), Godido, essa
obra-prima de além-sertão, de Vera Micaia, lembra outra obra-prima: A
Triste Partida, de Patativa do Assaré.
Godido
à memória de João Dias
Dos
longes do meu sertão natal,
eu
desci à cidade da civilização.
Embriaguei-me
de pasmo ante os astros
suspensos
dos postes das ruas
e a
atracção das montras nuas
tomou-me
a respiração.
Todo
esse brilho de névoa, ténue e superficial
que
envolve a capital,
me
cegou e fez de mim coisa sua.
Quando
cheguei,
trazia
no olhar a luz verde dos negros simples
e uma dádiva
maravilhosa em cada mão.
Mas a
cidade, a cidade, a cidade!
Esmagou
com os pneus de seu luxo,
sem
caridade,
meus
pés cortados nos trilhos duros do sertão.
Encarcerou-me
numa neblina quase palpável de ódio de desprezo,
e
ignorando a luz verde do meu olhar,
a
maravilhosa oferta
(essa
estrela, esse tesouro) de cada minha mão aberta,
exigiu-me
impiedosamente a abdicação
da
minha qualidade intangível de ser humano!
Nas
noites frias,
sem
batuques, sem lua,
as
estrelas continuaram brilhando insensíveis,
através
da cacimba, suspensa dos postes da rua.
Minha
consolação
Minha
Mãe silenciosa oferecendo-me suas costas nuas,
mornas
como sol de inverno...
Minha
Mãe vencendo a cacimba e a humilhação,
para me
vir belekar
humilde
e sofredora, com suas tocantes canções de acalentar!
Ah, mas
eu não me deixei adormecer.
Levantei-me
e gritei contra a noite sem lua
sem
batuque, sem nada que me falasse da minha África,
da sua
beleza majestosa e natural,
sem uma
única gota da sua magia!
A luz
verde incendiou-se no meu olhar
e foi
fogueira vermelha na noite fria
dos
revoltados.
Ainda
grito,
porque
quero ser ainda, sempre, pela vida fora,
o que
fui outrora:
Rainha
nas costas de minha Mãe!
Como
tu, meu irmão negro, desorientado e perdido,
na
cidade cruel...
Como
tu!
Por
isso é que este meu canto ingénuo, que soa banal,
Traz no
seu fundo mais fundo, Godido, meu irmão,
a marca
rubra dum selo fraternal
constante
e imortal!
*
Ilustração de Joba Tridente – 2013
“Poesia de forte impacto social, acusatória,
a sua linguagem recorre estilisticamente à ressonância verbal, ao encadeamento
de significantes sonoros ásperos, à utilização de palavras que transportam o
"grito inchado" de esperança. Noémia de Sousa, como autêntica
pioneira da Literatura Moçambicana (como assim sempre foi considerada)
preconiza - no seu percurso literário - a revolução como único meio de
modificar as estruturas sociais que assolam a terra moçambicana. Sempre, e
desde muito cedo, pretendeu que o seu povo avançasse uno, em coletivo, em
direção a um futuro que alterasse os eixos em que se fundamentava a atitude do
homem, mas sem nunca fazer a apologia da desumanização. Afirmava-se, acima de
tudo, africana e apostava fortemente na divulgação dos valores culturais
moçambicanos. As propostas essenciais da sua expressão literária vão do
desencanto quotidiano, de uma certa amargura, de uma certa raiva, até ao grito
dorido, até ao orgulho racial, até ao protesto altivo que contém a pulsão
danada contra cinco séculos de humilhação.” Fragmento de Noémia
de Sousa, publicado em Infopédia.
“Os poemas de Noémia de Sousa escritos
antes em panfletos e jornais de Moçambique foram mais tarde espalhados por
diversos lugares como Portugal e França, através de amigos e parentes. Eram a
oportunidade da afirmação da cultura africana naqueles tempos de guerra e
violência, o que levou os moçambicanos a refletirem sobre suas péssimas
condições de sobrevivência aos momentos de horror vividos numa pátria que não
sustentava mais o valor da própria cultura. Noémia sentia que precisava fazer a
população acordar de maneira eficaz e levantar uma revolução não armada, mas a revolução
de não aceitação, de insubmissão, mas como tocar a consciência do povo que vivia
sem direito à fala? “É por isso que os intelectuais produzidos e saídos da
situação colonial aprendem, que o seu privilégio (o direito à fala) é a sua
perda (da voz original)”
(NOA, 2009, p. 88). Fragmento de A Identidade Moçambicana na Poesia
de Noémia de Sousa - Luciana Neuma Silva Muniz Meira Dantas
(PG/MLI-UEPB) - Colóquio Internacional de
Estudos Linguísticos e Literários - UEM - Maringá - 2010.
Vera Micaia é pseudônimo de Carolina Noémia Abranches de Sousa Soares (Catembe, 1926 - Cascais,
2003). Jornalista, escritora, tradutora, a moçambicana Noémia de Souza viveu em Lisboa, Paris, Brasil. Os seus poemas, transbordando
africanidade, encontraram eco em O Brado
Africano (onde foi publicado originalmente Godido), Mensagem (CEI), Mensagem (Luanda), Itinerário, Notícias do
Bloqueio (Porto), Moçambique 58, Vértice (Coimbra), Sul (Brasil). Sangue Negro,
compilação de poesia escrita entre 1849 e 1951, foi publicado em 2001, pela
Associação dos Escritores Moçambicanos. A
antologia de poesia moçambicana Nunca
Mais é Sábado, organizada por Nelson Saúte, também traz trabalhos seus. O
pseudônimo Vera Micaia foi adotado para
que a voz moçambicana de Noémia de Sousa
continuasse ecoando do exílio. Fonte biográfica: Wikipédia.
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