quarta-feira, 6 de março de 2013

Vera Micaia: Godido



A universalidade de Godido, poema de Vera Micaia (pseudônimo de Noémia de Sousa) é tão tocante quanto reinante. Esse migrar, emigrar, imigrar..., fugir da seca, do sertão, da miséria..., ir pra cidade grande..., e não olhar para trás, não se despedir dos eus que vão se esfarelando pelo caminho, é a lógica do desesperado, que só não consegue é matar a saudade. Publicado em Separata da Mensagem - dedicada à Poesia de Moçambique (196?), Godido, essa obra-prima de além-sertão, de Vera Micaia, lembra outra obra-prima: A Triste Partida, de Patativa do Assaré.


Godido
à memória de João Dias

Dos longes do meu sertão natal,
eu desci à cidade da civilização.
Embriaguei-me de pasmo ante os astros
suspensos dos postes das ruas
e a atracção das montras nuas
tomou-me a respiração.
Todo esse brilho de névoa, ténue e superficial
que envolve a capital,
me cegou e fez de mim coisa sua.

Quando cheguei,
trazia no olhar a luz verde dos negros simples
e uma dádiva maravilhosa em cada mão.

Mas a cidade, a cidade, a cidade!
Esmagou com os pneus de seu luxo,
sem caridade,
meus pés cortados nos trilhos duros do sertão.
Encarcerou-me numa neblina quase palpável de ódio de desprezo,
e ignorando a luz verde do meu olhar,
a maravilhosa oferta
(essa estrela, esse tesouro) de cada minha mão aberta,
exigiu-me impiedosamente a abdicação
da minha qualidade intangível de ser humano!

Nas noites frias,
sem batuques, sem lua,
as estrelas continuaram brilhando insensíveis,
através da cacimba, suspensa dos postes da rua.
Minha consolação
Minha Mãe silenciosa oferecendo-me suas costas nuas,
mornas como sol de inverno...
Minha Mãe vencendo a cacimba e a humilhação,
para me vir belekar
humilde e sofredora, com suas tocantes canções de acalentar!
Ah, mas eu não me deixei adormecer.
Levantei-me e gritei contra a noite sem lua
sem batuque, sem nada que me falasse da minha África,
da sua beleza majestosa e natural,
sem uma única gota da sua magia!
A luz verde incendiou-se no meu olhar
e foi fogueira vermelha na noite fria
dos revoltados.

Ainda grito,
porque quero ser ainda, sempre, pela vida fora,
o que fui outrora:
Rainha nas costas de minha Mãe!

Como tu, meu irmão negro, desorientado e perdido,
na cidade cruel...
Como tu!

Por isso é que este meu canto ingénuo, que soa banal,
Traz no seu fundo mais fundo, Godido, meu irmão,
a marca rubra dum selo fraternal
constante e imortal!

*
Ilustração de Joba Tridente – 2013


“Poesia de forte impacto social, acusatória, a sua linguagem recorre estilisticamente à ressonância verbal, ao encadeamento de significantes sonoros ásperos, à utilização de palavras que transportam o "grito inchado" de esperança. Noémia de Sousa, como autêntica pioneira da Literatura Moçambicana (como assim sempre foi considerada) preconiza - no seu percurso literário - a revolução como único meio de modificar as estruturas sociais que assolam a terra moçambicana. Sempre, e desde muito cedo, pretendeu que o seu povo avançasse uno, em coletivo, em direção a um futuro que alterasse os eixos em que se fundamentava a atitude do homem, mas sem nunca fazer a apologia da desumanização. Afirmava-se, acima de tudo, africana e apostava fortemente na divulgação dos valores culturais moçambicanos. As propostas essenciais da sua expressão literária vão do desencanto quotidiano, de uma certa amargura, de uma certa raiva, até ao grito dorido, até ao orgulho racial, até ao protesto altivo que contém a pulsão danada contra cinco séculos de humilhação.” Fragmento de Noémia de Sousa, publicado em Infopédia.

“Os poemas de Noémia de Sousa escritos antes em panfletos e jornais de Moçambique foram mais tarde espalhados por diversos lugares como Portugal e França, através de amigos e parentes. Eram a oportunidade da afirmação da cultura africana naqueles tempos de guerra e violência, o que levou os moçambicanos a refletirem sobre suas péssimas condições de sobrevivência aos momentos de horror vividos numa pátria que não sustentava mais o valor da própria cultura. Noémia sentia que precisava fazer a população acordar de maneira eficaz e levantar uma revolução não armada, mas a revolução de não aceitação, de insubmissão, mas como tocar a consciência do povo que vivia sem direito à fala? “É por isso que os intelectuais produzidos e saídos da situação colonial aprendem, que o seu privilégio (o direito à fala) é a sua perda (da voz original)” (NOA, 2009, p. 88). Fragmento de A Identidade Moçambicana na Poesia de Noémia de Sousa - Luciana Neuma Silva Muniz Meira Dantas (PG/MLI-UEPB) - Colóquio Internacional de Estudos Linguísticos e Literários - UEM - Maringá - 2010.

Vera Micaia é pseudônimo de Carolina Noémia Abranches de Sousa Soares (Catembe, 1926 - Cascais, 2003). Jornalista, escritora, tradutora, a moçambicana Noémia de Souza viveu em Lisboa, Paris, Brasil. Os seus poemas, transbordando africanidade, encontraram eco em O Brado Africano (onde foi publicado originalmente Godido), Mensagem (CEI), Mensagem (Luanda), Itinerário, Notícias do Bloqueio (Porto), Moçambique 58, Vértice (Coimbra), Sul (Brasil). Sangue Negro, compilação de poesia escrita entre 1849 e 1951, foi publicado em 2001, pela Associação dos Escritores Moçambicanos.  A antologia de poesia moçambicana Nunca Mais é Sábado, organizada por Nelson Saúte, também traz trabalhos seus. O pseudônimo Vera Micaia foi adotado para que a voz moçambicana de Noémia de Sousa continuasse ecoando do exílio. Fonte biográfica: Wikipédia.

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