sábado, 10 de setembro de 2016

Jorge de Lima: Enchente

Aproveitando que no mês de setembro, além da primavera, e ou talvez por isso, o Brasil é tomado por feiras de livros e encontros literários, expondo a velha e a nova literatura para novos e velhos leitores, decidi (re)visitar alguns grandes escritores brasileiros e portugueses, cuja obra pode ser apreciada com prazer e considerações por crianças de qualquer idade. São poemas que remetem à infância, ao campo, aos jogos juvenis..., por vezes até melancólicos no seu saudosismo, mas sempre (e)ternos no registro lúdico de um tempo que já não há. Há muito!

O número de poemas será o de um a três, por autor, e as postagens sempre individuais (um por página) para melhor apreciação de cada obra.  Esta primeira edição contará com mais ou menos 30 escritores pinçados ao acaso em meus arquivos. Futuramente farei uma edição apenas com escritoras.

Como falei ontem..., ao publicar o antológico poema Noite de Inverno, de Arronches Junqueiro (1868-1940)..., o tempo por aqui, no Falas ao Acaso, continua chuvoso e sujeito a tempestades. A prova disso é a presença do ousado autor alagoano Jorge de Lima (1893-1953), com seu estilo “sem estilo” livre, nos apresentando o seu adorável poema Enchente (pra alegria geral da garotada), do livro Obra Poética (1950). Ah, ele retorna amanhã com a magnífica pérola O Mundo do Menino Impossível.


        

ENCHENTE
Jorge de Lima

– Por que as jandaias e os periquitos estão gritando como os meninos
do Grupo, na hora de vadiar?
– É uma cabeça de enchente que veio ontem de tarde.

E o rio deu pra falar grosso
e bancar Zé-pabulagem:
– “Não duvide que eu levo
a sua almofada de fazer renda, minha velha!”

E o rio cresceu. Entrou na camarinha
e lá se foi com a almofada da velha!
– “Deus te favoreça, meu filho,
– você, ainda outro dia, era tão manso,
lavava até os pratos de minha cozinha!”

– “Não duvide, seu canoeiro,
que eu emborco a sua canoa!”

E rodou com o canoeiro
e virou a canoa mesmo.
E entrou nos fundos das casas
e saiu nas portas da rua.
Subiu no olho da ingazeira,
tirou ingá e comeu.
Pulou das pedras em baixo,
espumando como um doido.
Fez até medo às piabas, que correram
pra os barreiros.

Só os meninos estão satisfeitos:
– “Deus permita que o rio encha mais!”
– “Deus permita que o rio encha mais!”

Quando o rio entrar na rua,
as salas de visita serão banheiros.
Eles deitarão barquinhos de cima das janelas,
e a professora fechará a escola.

– “Deus permita que o rio encha mais!”
– “Deus permita que o rio encha mais!”

*
ilustração de Joba Tridente - 2016



Jorge Mateus de Lima (União dos Palmares - Alagoas: 23.04.1893 - Rio de Janeiro-RJ: 15.11.1953) foi médico, político, escritor (de prosa e verso), biógrafo, ensaísta e pintor brasileiro.  O autor do desconcertante poema Essa Negra Fulô (já postado por aqui) e do inesquecível Invenção de Orfeu (1952), o modernista Jorge de Lima trafega com a mesma disciplina, ritmo e inquietação entre a poesia e o romance. Poesia: XIV Alexandrinos (1914); O Mundo do Menino Impossível (1925); Poemas (1927); Novos Poemas (1929); O Acendedor de lampiões (1932); Tempo e Eternidade (1935); A Túnica Inconsútil (1938); Anunciação e encontro de Mira-Celi (1943); Poemas Negros (1947); Livro de Sonetos (1949); Obra Poética (1950); Invenção de Orfeu (1952); Antologia Poética (1969). Romance: O anjo (1934); Calunga (1935); A mulher obscura (1939); Guerra dentro do beco (1950). Há farto e bom material sobre Jorge de Lima na web. O mais breve está na Wikipédia.

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