domingo, 11 de setembro de 2016

Jorge de Lima: O Mundo do Menino Impossível

Aproveitando que no mês de setembro, além da primavera, e ou talvez por isso, o Brasil é tomado por feiras de livros e encontros literários, expondo a velha e a nova literatura para novos e velhos leitores, decidi (re)visitar alguns grandes escritores brasileiros e portugueses, cuja obra pode ser apreciada com prazer e considerações por crianças de qualquer idade. São poemas que remetem à infância, ao campo, aos jogos juvenis..., por vezes até melancólicos no seu saudosismo, mas sempre (e)ternos no registro lúdico de um tempo que já não há. Há muito!

O número de poemas será o de um a três, por autor, e as postagens sempre individuais (um por página) para melhor apreciação de cada obra.  Esta primeira edição contará com mais ou menos 30 escritores pinçados ao acaso em meus arquivos. Futuramente farei uma edição apenas com escritoras.

O ousado autor Jorge de Lima (1893-1953), com seu estilo “sem estilo” livre, chegou ontem com Enchente e retorna hoje com o magnífico poema O Mundo do Menino Impossível, presente no livro O Mundo do Menino Impossível (1925). O que me fascina neste poema é a sua contemporaneidade. Recentemente orientei uma Oficina de Brinquedos feitos com Material Reciclável e presenciei ação parecida da garotada. A cada (re)leitura desta pérola rara, me arrepio só de pensar que esta obra foi escrita há 91 anos. Amanhã o fidalgo Curvo Semedo (1766-1838) aparece por aqui com sua leitura diferenciada das Fábulas de La Fontaine.


                   

O Mundo do Menino Impossível
Jorge de Lima

        Fim da tarde, boquinha da noite
        com as primeiras estrelas
        e os derradeiros sinos.

        Entre as estrelas e lá detrás da igreja,
        surge a lua cheia
        para chorar com os poetas.

        E vão dormir as duas coisas novas desse mundo:
                                 o sol e os meninos

        Mas ainda vela
        o menino impossível
                     aí do lado
        enquanto todas as crianças mansas
                                      dormem
                           acalentadas
                       por Mãe-negra Noite.
        O menino impossível
                que destruiu
        os brinquedos perfeitos
                que os vovós lhe deram:

                        o urso de Nürnberg,
                o velho barbado jugoeslavo,
                        as poupées de Paris aux
                               cheveux crêpes,
                        o carrinho português
                feito de folha de Flandres,
                a caixa de música checo-eslovaca,
                o polichinelo italiano
                                 made in England,
                 o trem de ferro de U. S. A.
                 e o macaco brasileiro
                                 de Buenos Aires
                 moviendo la cola y la cabeza.

                 o menino impossível
                 que destruiu até
                 os soldados de chumbo de Moscou
           e furou os olhos de um Papá Noel,
                  brinca com sabugos de milho,
                                  caixas vazias,
                                   tacos de pau,
                  pedrinhas brancas do rio ...

                  "Faz de conta que os sabugos
                                são bois..."
                   "Faz de conta..."
                   "Faz de conta..."
                             E os sabugos de milho
                    mugem como bois de verdade...

                    e os tacos que deveriam ser
                    soldadinhos de chumbo são
                    cangaceiros de chapéus de couro...

                     E as pedrinhas balem!
                     Coitadinhas das ovelhas mansas
                                      longe das mães
                     presas nos currais de papelão!

É boquinha da noite
no mundo que o menino impossível
povoou sozinho!

                              A mamãe cochila.
                              O papai cabeceia.
                              O relógio badala.

                        E vem descendo
                              uma noite encantada

                              da lâmpada que expira
                                    lentamente
                              na parede da sala...

                        o menino pousa a testa
                        e sonha dentro da noite quieta
                                  da lâmpada apagada
                        com o mundo maravilhoso
                        que ele tirou do nada ...

Chô! Chô! Pavão!
Sai de cima do telhado
Deixa o menino dormir
                     Seu soninho sossegado!

*
ilustração de Joba Tridente - 2016


Jorge Mateus de Lima (União dos Palmares - Alagoas-: 23.04.1893 - Rio de Janeiro-RJ: 15.11.1953) foi médico, político, escritor (de prosa e verso), biógrafo, ensaísta e pintor brasileiro.  O autor do desconcertante poema Essa Negra Fulô (já postado por aqui) e do inesquecível Invenção de Orfeu (1952), o modernista Jorge de Lima trafega com a mesma disciplina, ritmo e inquietação entre a poesia e o romance. Poesia: XIV Alexandrinos (1914); O Mundo do Menino Impossível (1925); Poemas (1927); Novos Poemas (1929); O Acendedor de lampiões (1932); Tempo e Eternidade (1935); A Túnica Inconsútil (1938); Anunciação e encontro de Mira-Celi (1943); Poemas Negros (1947); Livro de Sonetos (1949); Obra Poética (1950); Invenção de Orfeu (1952); Antologia Poética (1969). Romance: O anjo (1934); Calunga (1935); A mulher obscura (1939); Guerra dentro do beco (1950). Há farto e bom material sobre Jorge de Lima na web. O mais breve está na Wikipédia.

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