Aproveitando
que no mês de setembro, além da primavera, e ou talvez por isso, o Brasil é
tomado por feiras de livros e encontros literários, expondo a velha e a nova
literatura para novos e velhos leitores, decidi (re)visitar alguns grandes
escritores brasileiros e portugueses, cuja obra pode ser apreciada com prazer e
considerações por crianças de qualquer idade. São poemas que remetem à
infância, ao campo, aos jogos juvenis..., por vezes até melancólicos no seu
saudosismo, mas sempre (e)ternos no registro lúdico de um tempo que já não há.
Há muito!
O
número de poemas será o de um a três, por autor, e as postagens sempre
individuais (um por página) para melhor apreciação de cada obra. Esta primeira edição contará com mais ou menos
30 escritores pinçados ao acaso em meus arquivos. Futuramente farei uma edição
apenas com escritoras.
O
ousado autor Jorge de Lima (1893-1953),
com seu estilo “sem estilo” livre, chegou ontem com Enchente e retorna hoje com o magnífico poema O Mundo do Menino Impossível, presente no livro O Mundo do Menino Impossível (1925). O
que me fascina neste poema é a sua contemporaneidade. Recentemente orientei uma
Oficina de Brinquedos feitos com Material
Reciclável e presenciei ação parecida da garotada. A cada (re)leitura desta pérola rara,
me arrepio só de pensar que esta obra foi escrita há 91 anos.
Amanhã o fidalgo Curvo Semedo (1766-1838) aparece por aqui com sua leitura diferenciada das Fábulas de La Fontaine.
O Mundo do Menino Impossível
Jorge de Lima
Fim da tarde, boquinha da noite
com as primeiras estrelas
e os derradeiros sinos.
Entre as estrelas e lá detrás da
igreja,
surge a lua cheia
para chorar com os poetas.
E vão dormir as duas coisas novas desse
mundo:
o sol e os
meninos
Mas ainda vela
o menino impossível
aí do lado
enquanto todas as crianças mansas
dormem
acalentadas
por Mãe-negra Noite.
O menino impossível
que destruiu
os brinquedos perfeitos
que os vovós lhe deram:
o urso de Nürnberg,
o velho barbado jugoeslavo,
as poupées de Paris aux
cheveux crêpes,
o carrinho português
feito de folha de Flandres,
a caixa de música checo-eslovaca,
o polichinelo italiano
made in
England,
o trem de ferro de U. S. A.
e o macaco brasileiro
de Buenos
Aires
moviendo la cola y la cabeza.
o menino impossível
que destruiu até
os soldados de chumbo de
Moscou
e furou os olhos de um Papá Noel,
brinca com sabugos de milho,
caixas
vazias,
tacos de
pau,
pedrinhas brancas do rio ...
"Faz de conta que os
sabugos
são
bois..."
"Faz de conta..."
"Faz de conta..."
E os sabugos de
milho
mugem como bois de
verdade...
e os tacos que deveriam ser
soldadinhos de chumbo são
cangaceiros de chapéus de
couro...
E as pedrinhas balem!
Coitadinhas das ovelhas
mansas
longe das
mães
presas nos currais de
papelão!
É boquinha da noite
no mundo que o menino impossível
povoou sozinho!
A mamãe cochila.
O papai cabeceia.
O relógio badala.
E vem descendo
uma noite
encantada
da lâmpada que
expira
lentamente
na parede da
sala...
o menino pousa a testa
e sonha dentro da
noite quieta
da lâmpada
apagada
com o mundo maravilhoso
que ele tirou do nada
...
Chô! Chô! Pavão!
Sai de cima do telhado
Deixa o menino dormir
Seu
soninho sossegado!
*
ilustração de Joba
Tridente - 2016
Jorge Mateus de Lima (União dos
Palmares - Alagoas-: 23.04.1893 - Rio de Janeiro-RJ: 15.11.1953) foi médico,
político, escritor (de prosa e verso), biógrafo, ensaísta e pintor brasileiro. O autor do desconcertante poema Essa
Negra Fulô (já postado por aqui) e do inesquecível Invenção de Orfeu (1952), o modernista
Jorge de Lima trafega com a mesma disciplina, ritmo e inquietação entre a
poesia e o romance. Poesia: XIV Alexandrinos (1914); O Mundo do Menino Impossível (1925);
Poemas (1927); Novos Poemas (1929); O Acendedor de lampiões (1932); Tempo e Eternidade (1935); A Túnica Inconsútil (1938); Anunciação e encontro de Mira-Celi (1943);
Poemas Negros (1947); Livro de Sonetos (1949); Obra Poética (1950); Invenção de Orfeu (1952); Antologia Poética (1969). Romance: O anjo (1934); Calunga (1935);
A mulher obscura (1939); Guerra
dentro do beco (1950). Há farto e bom material sobre Jorge de Lima na web. O mais breve está na Wikipédia.
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