quinta-feira, 22 de setembro de 2016

Paulo Setúbal: Vida Campônia

Aproveitando que no mês de setembro, além da primavera, e ou talvez por isso, o Brasil é tomado por feiras de livros e encontros literários, expondo a velha e a nova literatura para novos e velhos leitores, decidi (re)visitar alguns grandes escritores brasileiros e portugueses, cuja obra pode ser apreciada com prazer e considerações por crianças de qualquer idade. São poemas que remetem à infância, ao campo, aos jogos juvenis..., por vezes até melancólicos no seu saudosismo, mas sempre (e)ternos no registro lúdico de um tempo que já não há. Há muito!

O número de poemas será o de um a três, por autor, e as postagens sempre individuais (um por página) para melhor apreciação de cada obra.  Esta primeira edição contará com mais ou menos 30 escritores pinçados ao acaso em meus arquivos. Futuramente farei uma edição apenas com escritoras.

O escritor brasileiro Paulo Setúbal (1893-1937) é um dos mais representativos e festejados nomes da literatura regionalista e do romance histórico. Dono de uma linguagem límpida e envolvente, a sua obra tem o poder de transportar qualquer leitor, até o mais urbano, para um sítio rural repleto s de sons, cores e odores. Para mim, que nasci e cresci no interior de São Paulo, reencontrar-me nessas memórias afetivas de Paulo Setúbal é um prazer inenarrável. Confira os seus versos cheios de prosa pastoral em três preciosos momentos presentes no antológico Alma Cabocla, que vendeu em sua primeira edição 3.000 exemplares. Anteontem você conheceu os afazeres de A Fazenda. Ontem o poeta traçou um retrato impecável desse povo da roça, praticamente invisível ao povo da cidade grande, em A Gente. Hoje você acompanha a graça de um dia bucólico (quase) sem pressa em Vida Campônia. Amanhã, publico uma pertinente poema de Olavo Bilac (1865-1918).



Vida Campônia
Paulo Setúbal

Como um caboclo bem rude,
Eu vivo aqui, nesta paz,
Recuperando a saúde,
Que eu esbanjei, quanto pude,
Nas tonteiras de rapaz.

Mal brilha o primeiro raio
Da aurora rubra e louçã,
Eu monto um fogoso baio,
E alegre, e lépido, saio
Pelo esplendor da manhã.

Lorde, o meu bravo cachorro,
Vem pela estrada a saltar:
E a várzea, e os pastos, e o morro,
Tudo, a galope, eu percorro,
Numa alegria sem par.

Do mato, cerrado e umbroso,
Vem cheiros de manacás;
Num pau-d'alho, alto e frondoso,
Vai um concerto furioso
De bem-te-vis e sabiás.

Vespas, cor de ouro brunido,
Lentejouladas de luz,
Fazem, com surdo zumbido,
Num tronco já carcomido,
O escasso mel dos enxus.

Fulguram, pelos caminhos,
Gotas de luz, como sóis;
Ruflos, canções, burburinhos,
Noivado em todos os ninhos,
Por toda a relva, aranhóis.

E em tudo quanto eu diviso,
Há tal brilho tal clarão,
Como se, do paraíso,
Deus acendesse um sorriso
Em cada ervinha do chão.

Volto... Os caboclos, no eito,
Vão desbastando os juás.
Eu venho tão satisfeito,
Como se houvesse em meu peito
- Um baile de tangarás!

Apeio. E então vivo e moço,
No claro terno de brim,
Vou eu, com grande alvoroço,
Sentar-me à mesa do almoço,
Que espera apenas por mim.

Risonha, a fumaça voa
Em densos, cálidos véus:
É o lombo, é a fava, é a leitoa,
- Toda a cópia, farta e boa,
Dos nossos ricos pitéus!

Depois, ao longo do dia,
Ferve, requeima o verão.
E há o pêssego, a melancia,
A fruta nova e sadia
Colhida em plena estação.

À noite, o luar, que fulgura,
Por tudo estende o seu véu.
Brilham estrelas na altura.
Uma infinita doçura
Penetra os campos e o céu.

Nessa calma, enquanto rola
A lua pela amplidão,
Subitamente se evola
O som duma grafonola,
Quebrando a paz do sertão.

Num timbre gasto e confuso,
Pelo silêncio rural,
Ecoa a voz do Caruso,
Velhas canções em desuso,
E fados de Portugal...

Nisto, o relógio badala:
Dez horas. Que? Já e tarde assim?
Toca a dormir! Fechem a sala!
A casa inteira se cala,
Tomba um silêncio sem fim.

Cheiro acre, de manjerona,
La fora embalsama o ar;
Tudo se aquieta. Ressona...
Eis que uma tarda sanfona
Passa na estrada, a chorar.

*
ilustração de Joba Tridente.2016



Paulo de Oliveira Leite Setúbal (Tatuí-SP: 01.01.1893 - São Paulo-SP: 04.05.1937), foi advogado, jornalista e escritor de prosa e verso. Autor de romances históricos, crônicas, contos, poesia e memória, Setúbal traduz como poucos a vida simples do brasileiro interiorano. A fidelidade com que retrata a vida campestre em seus poemas emociona, inebria. Paulo Setúbal publicou em Poesia: Alma Cabocla (1920); Romance: A Marquesa de Santos (1925); O Príncipe de Nassau (1926); Os Irmãos Leme (1933); O Sonho das Esmeraldas (1935); História: El-dorado, História (1934); O Romance da Prata (1935); Conto: As Maluquices do Imperador (1927); A Bandeira de Fernão Dias (1928); Nos Bastidores da história (1928); Crônica: O Ouro de Cuiabá (1933); Ensaio: A Fé na Formação da Nacionalidade (1936); Memórias: Confíteor (1937); Teatro: Um Sarau no Pátio de São Cristóvão (1926). Saiba mais: Academia Brasileira de Letras.

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