Aproveitando
que no mês de setembro, além da primavera, e ou talvez por isso, o Brasil é
tomado por feiras de livros e encontros literários, expondo a velha e a nova
literatura para novos e velhos leitores, decidi (re)visitar alguns grandes
escritores brasileiros e portugueses, cuja obra pode ser apreciada com prazer e
considerações por crianças de qualquer idade. São poemas que remetem à
infância, ao campo, aos jogos juvenis..., por vezes até melancólicos no seu
saudosismo, mas sempre (e)ternos no registro lúdico de um tempo que já não há.
Há muito!
O
número de poemas será o de um a três, por autor, e as postagens sempre
individuais (um por página) para melhor apreciação de cada obra. Esta primeira edição contará com mais ou
menos 30 escritores pinçados ao acaso em meus arquivos. Futuramente farei uma
edição apenas com escritoras.
Machado de Assis (1839-1908) é um autor brasileiro que dispensa apresentações. Venho
querendo publicar o seu belíssimo soneto Círculo
Vicioso (1879 ou 1880) já há um bom tempo. A oportunidade chegou com este resgate da
memória afetiva. Ah, publico ainda O
Quebrador de Pedras..., um Conto Zen (desconheço a autoria e o tradutor)
que tenho em meus arquivos digitais há muitos anos e que me parece ter tudo a
ver com o soneto machadiano. Influência e ou coincidência? Amanhã é a vez do
inspiradíssimo Martins Fontes (1884-1937).
Círculo Vicioso
Machado de Assis
Bailando no ar, gemia inquieto vaga-lume:
- Quem me dera que fosse aquela loura estrela,
que arde no eterno azul, como uma eterna vela!
Mas a estrela, fitando a lua, com ciúme:
- Pudesse eu copiar o transparente lume,
que, da grega coluna a gótica janela,
contemplou, suspirosa, a fronte amada e bela!
Mas a lua, fitando o sol, com azedume:
- Mísera! tivesse eu aquela enorme, aquela
claridade imortal, que toda a luz resume!
Mas o sol, inclinando a rutila capela:
- Pesa-me esta brilhante aureola de nume...
Enfara-me esta azul e desmedida umbela...
Por que não nasci eu um simples vaga-lume?
*
ilustração
de Joba Tridente
Conto Zen
O Quebrador de Pedras
autoria
desconhecida
Era uma vez um
simples quebrador de pedras que estava insatisfeito consigo mesmo e com sua
posição na vida.
Um dia ele
passou em frente a uma rica casa de um comerciante. Através do portal aberto,
ele viu muitos objetos valiosos e luxuosos e importantes figuras que frequentavam
a mansão.
"Quão poderoso é este mercador!" pensou o
quebrador de pedras. Ele ficou muito invejoso disso e desejou que ele pudesse
ser como o comerciante.
Para sua grande
surpresa ele repentinamente tornou-se o comerciante, usufruindo mais luxos e
poder do que ele jamais tinha imaginado, embora fosse invejado e detestado por
todos aqueles menos poderosos e ricos do que ele. Um dia um alto oficial do
governo passou à sua frente na rua, carregado em uma liteira de seda,
acompanhado por submissos atendentes e escoltado por soldados, que batiam
gongos para afastar a plebe. Todos, não importa quão ricos, tinham que se
curvar à sua passagem.
"Quão poderoso é este oficial!" ele pensou. "Gostaria de poder ser um alto
oficial!" Então ele tornou-se o alto oficial, carregado em sua liteira
de seda para qualquer lugar que fosse, temido e odiado pelas pessoas à sua
volta. Era um dia de verão quente, e o oficial sentiu-se muito desconfortável
na suada liteira de seda. Ele olhou para o Sol. Este fulgia orgulhoso no céu,
indiferente pela sua reles presença abaixo.
"Quão poderoso é o Sol!" ele pensou. "Gostaria de ser o Sol!"
Então ele
tornou-se o Sol. Brilhando ferozmente, lançando seus raios para a terra sobre
tudo e todos, crestando os campos, amaldiçoado pelos fazendeiros e
trabalhadores. Mas um dia uma gigantesca nuvem negra ficou entre ele e a terra,
e seu calor não mais pôde alcançar o chão e tudo sobre ele.
"Quão poderosa é a nuvem de tempestade!" ele pensou "Gostaria de ser uma nuvem!"
Então ele
tornou-se a nuvem, inundando com chuva campos e vilas, causando temor a todos.
Mas repentinamente ele percebeu que estava sendo empurrado para longe com uma
força descomunal, e soube que era o vento que fazia isso.
"Quão poderoso é o Vento!" ele pensou. "Gostaria de ser o vento!"
Então ele
tornou-se o vento de furacão, soprando as telhas dos telhados das casas,
desenraizando árvores, temido e odiado por todas as criaturas na terra. Mas em
determinado momento ele encontrou algo que ele não foi capaz de mover nem um
milímetro, não importasse o quanto ele soprasse em sua volta, lançando-lhe
rajadas de ar. Ele viu que o objeto era uma grande e alta rocha.
"Quão poderosa é a rocha!" ele pensou. "Gostaria de ser uma rocha!"
Então ele
tornou-se a rocha. Mais poderoso do que qualquer outra coisa na terra, eterno,
inamovível. Mas enquanto ele estava lá, orgulhoso pela sua força, ele ouviu o
som de um martelo batendo em um cinzel sobre uma dura superfície, e sentiu a si
mesmo sendo despedaçado.
"O que poderia ser mais poderoso do que uma
rocha?!?" pensou surpreso.
Ele olhou para
baixo de si e viu a figura de um quebrador de pedras.
*
ilustração de Joba Tridente.2016
Joaquim Maria Machado de Assis (Rio de Janeiro-RJ: 21.06.1839
- Rio de Janeiro-RJ: 29.09.1908) é considerado um dos maiores autores da
literatura universal. Escritor de prosa e verso, cronista, dramaturgo,
jornalista e crítico literário, foi cofundador e primeiro presidente da Academia
Brasileira de Letras, em cujo site encontra-se farto material biográfico.
Em sua bibliografia, que pode ser conferida também no Wikipédia, constam dez romances e dez peças de teatro, cinco coletâneas
de poesia e sete de contos e diversas obras póstumas.
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